Eu estava deitado na cama lendo um livro qualquer quando a minha irmã chegou. O gato começou a miar desesperado, como sempre fazia antes mesmo que ela abrisse o portão. Era como se houvesse uma conexão entre a minha irmã e o bichano. Eu saí pro quintal a fim de verificar se era mesmo ela quem havia chegado. Mais uma vez o gato tinha razão.
Minha irmã havia ido até a clínica e voltou de Uber. Por algum motivo ela estava feliz, com os olhos brilhantes e uma expressão sorridente. Não perguntei o que era. Às vezes, a felicidade alheia é um espetáculo que a gente só precisa observar, sem querer entender.
“Oi, Cá!” Era assim que ela me chamava.
Minha mãe estava sentada à mesa tomando café. Deu um gole na bebida e olhou na direção da porta quando viu a minha irmã chegar.
“Essa gata te conhece de longe!”, disse minha mãe, a voz suave e cheia de um carinho inconfundível, como se estivesse entregando um segredo simples, mas precioso. “Acredita que ela começou a miar antes mesmo de eu ouvir o portão?”
E a gata continuava miando.
Minha irmã pegou o animal no colo e deu um beijo na cabeça do bichano. A cena era simples, mas tinha algo de mágico, como se ali, naquele momento, se resolvesse o mundo. Depois abriu o sachê de Whiskas e despejou o conteúdo no potinho de ração atrás da porta. Imediatamente a gata parou de miar.
Com a missão cumprida, ela se sentou à mesa. O café fresquinho exalava o aroma de tranquilidade, e ela foi saboreando a bebida como se fosse um rito. A conversa com minha mãe começou de forma suave, até com uma empolgação que fazia as palavras saltarem, se entrelaçando, criando um clima gostoso de quem se reencontra em paz. As duas conversando, trocando risadas, sem pressa, como se o tempo tivesse dado um descanso. Não participei da conversa, aquele clima de serenidade já bastava.
Eu ali, com meu livro nas mãos, e elas duas, em sua conversa animada, sem pressa de terminar. A paz estava ali, nas palavras trocadas, na gata deitada ao lado do potinho de ração, na xícara de café que se esvaziava lentamente. Não precisei fazer mais nada. Tudo estava no seu devido lugar.
Acordei com uma sensação boa, daquelas que parecem abraçar a gente como um cobertor aconchegante. Sabe quando você abre os olhos e tudo parece leve, em paz? Mas, logo que olhei em volta, percebi ser só o eco de um sonho. Só um sonho bom, desses que nos deixam com a impressão de que a vida é mais fácil do que ela realmente é.
Lá fora, a chuva caía forte, batendo na veneziana de madeira com aquele barulho que parece uma música, mas que, na verdade, é só o som da natureza tentando se fazer ouvir. Me espreguicei, deixando que o corpo tomasse consciência de si, como se ele também estivesse dizendo “calma, não precisa apressar”. Levantei da cama e fui até o quarto da minha mãe.
Ela estava lá, como sempre, de barriga para cima, dormindo. O rosto tranquilo, mas com a expressão que o tempo vai deixando, como uma marca silenciosa das batalhas que ela enfrentou e que, muitas vezes, nem a gente percebe. Ela estava acamada, já fazia algum tempo, e desde que a doença chegou, aquela posição se tornou a mais comum.
Fui até o quarto da minha irmã, com passos lentos, de quem já sabe o que vai encontrar. Ela estava dormindo. Suspirei aliviado ao perceber que ela ainda respirava.
Minha irmã já não dirige mais, não sai de casa, nem de Uber. O tumor de 5 cm no cérebro não deixa ela fazer nada do que fazia antes. Nem sorrir. Ela apenas respira.
Voltei pra cama e me deitei em posição fetal, na esperança de que meu corpo, nesse formato, pudesse reverter o tempo e trazer de volta o que o destino havia levado. Quem sabe eu conseguiria dormir e retornar ao sonho, aquele sonho bom, onde encontraria a minha mãe fazendo café no bule e minha irmã sorrindo novamente. Os sonhos são assim, né? A gente tenta se refugiar neles, na esperança de que, enquanto dormimos, o mundo se ajeite.