PESADELO DO TEMPO

Levantei da cama apressado e me olhei no espelho. Algo estava diferente, só não sabia dizer o quê. Não me recordo da temperatura da água, nem de ter me enxugado após o banho. Na verdade, não consigo me lembrar dos detalhes e nem da sequência dos fatos. Me recordo apenas de ter olhado o Whatsapp antes de fechar a porta da sala, de enfiar o celular no bolso da jaqueta e ajeitar o cabelo. Estes são os únicos fatos concatenados desde o momento em que me levantei até eu ter saído de casa.

Como sempre fazia, parei na padaria da esquina a fim de tomar o café da manhã. Sentia o estômago vazio e necessitando de alguma refeição. No entanto me senti deslocado no ambiente, como se estivesse em um lugar no qual eu não era bem-vindo. Havia muitos jovens trajados de forma despojada e conversando com a vivacidade que lhes é peculiar. Os poucos velhos no local pareciam carrancudos, distantes e com olhar sem brio. Por que os jovens possuem uma beleza intrínseca e os velhos apenas rugas, cabelos brancos e aparência apática? Fiquei perturbado com a constatação e preferi me sentar afastado das demais pessoas, numa mesinha ao fundo, de onde eu podia observar sem ser observando.

Uma garota morena e nariz adunco apanhou um pedaço de pão e levou à boca do rapaz sentado à sua frente. Era um carinha albino com o rosto coberto de espinhas. Espinha protuberantes, daquelas avermelhadas com as pontas amarelas, prontas a explodir a qualquer instante. Pelos gracejos deviam ser namorados. E formavam um belo casal. À minha esquerda, um rapaz de barba ao estilo lenhador e uma moça de cabelo ruivo conversavam sorridentes. Ele vestia uma camisa xadrez, não me recordo a cor, e uma calça chino apertada. A garota vestia um conjunto esverdeado ou azul, não me lembro ao certo, uma calça de boca larga e tailleur acinturado. O terninho não fechava na frente, mas estava elegante.

Enquanto o rapaz da padaria vinha na minha direção com o café na bandeja, fiquei observando-o de soslaio. Vestia uma calça jeans e uma camisa polo escura. Era magro, muito magro, e calça amontoava na bunda ou, melhor dizendo, no lugar onde deveria haver uma. Os olhos projetados para fora pareciam ainda mais saltados devido às lentes grossas dos óculos. Mas havia algo de belo nele.

Quando eu era jovem, aquelas pessoas não se enquadrariam em nenhum padrão de beleza, mas agora todas elas pareciam bonitas, cada um ao seu modo.

A percepção de beleza nos jovens é estranha porque com o passar dos anos nos tornamos menos exigentes e não enxergamos a feiura nessas pessoas. 

Chegando no escritório, olhei a foto pendurada na parede. Minha esposa sorrindo e segurando o Rafinha nos braços. Mas não os tinha mais comigo. Ah! Como a Valquíria era bela! O tempo havia apagado seu rosto da minha memória, mas a foto sobre a minha mesa trazia de volta sua imagem, sempre, todas as manhãs. Pele clara com algumas sardas nas bochechas, cabelo liso puxado para trás das orelhas e um sorriso largo no rosto. Desejei voltar no tempo a fim de reencontrá-la. Mas o tempo é um bandido cruel, que rouba de nós tudo o que nos é querido e depois foge sorrateiramente.

Foi aí que percebi a razão da beleza das pessoas que encontrei pelo caminho. Elas tinham a beleza da juventude, beleza que de mim já havia fugido com o passar dos anos. Os jovens não têm essa percepção do frescor da juventude. Por isso eles fazem distinção entre uma pessoa bonita e uma pessoa feia. Depois de certa idade, passamos a perceber apenas o frescor da juventude, a beleza em essência, a ausência de sulcos na pele, a dentição espaçada e o sorriso largo.

Olhei o retrato outra vez e suspirei fundo. Eu já havia perdido a minha esposa e o meu filho. Agora, a parte da beleza que outrora eu tivera.

As lágrimas chegaram aos meus olhos, enuviando minha visão. Cruzei as mãos sobre a nuca e chorei calado. Sentia uma amargura pungente e repentina em meu peito.

Acordei entre soluços, com o coração batendo em ritmo frenético. Olhei desesperado para o lado. Valquíria, dormia como um ser angelical. Senti o perfume de seu cabelo e a quentura de sua perna aquecendo a minha. Era o calor que eu precisava para aquecer o meu coração naquele instante. Suspirei aliviado, acendi o abajur e olhei na direção do berço, no outro canto do quarto. Rafael dormia abraçado com o ursinho de pelúcia encardido.

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