Quem me conhece sabe que eu sou míope desde que o mundo é mundo – ou pelo menos desde que eu tento enxergá-lo. Minha mãe jura de pés juntos que eu já nasci desafiando as leis da física: na hora de mamar, minha boca parecia disputar um jogo de esconde-esconde com o peito dela. Era um tal de errar o alvo, que meu pai, desconfiado, já apostava suas fichas: “Esse aí vai ser são-paulino, só pode ser algum tipo de sina”. Ironia do destino ou não, eu realmente torço pro São Paulo.
Quando criança, meus momentos de glória no campinho de terra vermelha eram dignos de um Oscar de comédia pastelão. Os guris gritavam “Chuta, chuta!”, e lá ia eu, com toda a determinação do Neymar, mandar a bola direto… pro mato. Ou pro pé do adversário.
A danada da miopia, essa companheira fiel que me abraça desde o berço, já me jogou em tantas situações ridículas que eu poderia escrever um livro. E olha que nesses 40 anos de vida há muitas histórias!
Agora imagina miopia em parceria com bebida. É sobre isso que vou relatar hoje, mais um episódio inusitado direto do barzinho da esquina da rua Augusta com a Paulista — um daqueles bares com mesinhas na calçada em que a gente bebe enquanto se distrai observando o movimento ao redor. Sol de domingo fritando o asfalto, eu ali, um quarentão solteiro, fruto de um divórcio que me deixou sem esposa, sem amigos e com uma única parceira fiel: minha mão direita, essa sim uma verdadeira alma gêmea que nunca me deixa desamparado quando estou querendo me aliviar.
Depois que minha ex me deu um pé na bunda, esse rolé de bar virou uma rotina aos fins de semana. Antes do casamento, eu tinha uma galera até animada, mas ela acabou espantando todos os meus amigos. Resultado? Um cara solitário de meia-idade, afogando as mágoas na cerveja e me distraindo com o movimento da rua. Mas, como meu TDAH adora me sabotar, vamos pular essa parte melodramática e ir direto ao fiasco do dia.
Estava eu, já com algumas cervejas fazendo cócegas no cérebro, quando meu olho desfocado pescou algo bizarro do outro lado da rua: duas mulheres de burca. Sim, burcas, foi o que pensei! Num calor do cão, e aquelas mulheres lá, paradas, cobertas da cabeça aos pés em tecido preto. Meu cérebro de escritor frustrado — e meio embriagado — começou a girar: “O que raios elas estão fazendo num bar? Saboreando uma caipirinha halal?”. Minha curiosidade, mais traidora que minha ex, não me deixou ficar quieto. Paguei a conta e atravessei a rua, cheio de propósito, como um detetive de quinta categoria.
Cheguei, me acomodei numa mesinha estrategicamente afastada, e comecei minha investigação discreta, sem olhar diretamente na direção delas, em sinal de respeito, afinal de contas, não queria me arriscar a parecer desrespeitoso ou – na pior das hipóteses – receber uma lata de cerveja que explodiria na minha mão.
Inclinei a cabeça levemente e tentei escutar algum som vindo da outra mesa: será que falavam árabe? Português? Nada. Silêncio absoluto. “Deve ser coisa cultural”, pensei, enquanto minha mente divagava. Embora judeu, sempre nutri uma fascinação secreta pela cultura islâmica, especialmente o Irã. Nunca pisei lá, óbvio, pois não queria acabar virando alvo da polícia da moralidade, ou, pior, me expor à possibilidade de ser apedrejado por radicais religiosos. Mas as iranianas… ah, as poucas que vi sem véu (antes de virarem notícia trágica) eram de tirar o fôlego. Será que sob aquelas burcas ali na minha frente havia duas belas persas me julgando em segredo?
Minha curiosidade me impulsionou a me aproximar dos dois vultos pretos, que, graças à miopia, pareciam mais borrões misteriosos do que pessoas. Fiz um cumprimento discreto com a cabeça e olhei na direção do rosto. Não havia abertura para os olhos, nem sorrisos, nem gestos gentis que correspondessem ao meu cumprimento. “Povo estranho”, pensei. Entretanto, insisti. “Posso sentar com vocês?” Nenhuma resposta, então interpretei o silêncio como uma negativa.
Sentei na mesa ao lado mesmo assim, decidido a decifrar o enigma. Nenhum movimento. Nenhuma palavra. Olhei pra baixo e cadê os pés?
Foi aí que o garçom se aproximou sorrindo:
“Relaxa, cara, você não é o primeiro a confundir esses guarda-sois com muçulmanas de burca”. Deu um tapinha nas minhas costas, como quem consola um cachorro que caiu do sofá, e saiu rindo. Ajeitei os óculos no rosto, dei um gole na cerveja e ri de mim mesmo. A miopia, minha velha amiga, naquele momento potencializada pelo teor alcoólico da cerveja, mais uma vez transformou o banal em um espetáculo de ridículo.