CHÁ DE COGUMELO

Acendi a lanterna do celular e peguei a trilha escura que dava acesso à praia, uns cem metros em breu total. A lanterna iluminava apenas três ou quatro metros, no máximo. A areia na trilha dificultava os passos e o pé afundava a cada movimento adiante. Ocultos na mata ao meu redor, o cricrilar dos grilos, assobios de pássaros e folhas se esfregando uma nas outras, pesadas, como se alguém caminhasse entre elas, levaram a minha imaginação a tentar decifrar a origem de tais barulhos. Alguns eram conhecidos, mas outros fugiam da minha compreensão.

Aos poucos, o som das marés arrebentando contra a areia da praia se fez audível e desbancou o cricrilar dos grilos, o coaxar dos sapos e os sons indecifráveis que há pouco eu ouvira.

Era o final da trilha que dava acesso à Praia do Istmo. Sobre a minha cabeça, o céu estrelado exibia milhares de pontos luminosos. O Cruzeiro do Sul, as Três Marias e milhares de outros astros piscantes a milhares de anos-luz dali. É possível que algumas daquelas estrelas nem existam mais. Eu conseguia ver apenas o brilho que seguia em nossa direção através do espaço-tempo. Pelo menos foi o que imaginei.

Apaguei a lanterna do celular, me sentei no chão de areia e fiquei no escuro por uns instantes contemplando o cinturão de estrelas no céu e os sons dos chocalhos de Iemanjá que vinham do mar em minha direção. Eu não conseguia ver o mar à minha frente ou o matagal atrás de mim, apenas sabia que estavam ali. Fechei os olhos e respirei fundo. Se meus olhos não mais se abrissem, os anjos me pegariam pelas mãos porque no paraíso eu já estava.

Uns vinte metros adiante, próximo à falésia, as luzes coloridas do barracão pareciam flutuar em meio ao escuro. Acendi novamente a lanterna do celular e segui em direção ao local. O som da música eletrônica se tornava mais intenso à medida que eu avançava, desviando a minha atenção e transformando o som das ondas em ator coadjuvante.

Eu já tinha fumado antes de ir pra lá e cada batida da música eletrônica pulsava de forma vívida e se afastava de mim, lentamente, até se perder no espaço.

Atrás de uma protuberância de areia encimada pelos ramos rasteiros da salsa-da-praia, uma fogueira irradiava o fogo amarelado e a fumaça seguia dançando suave como uma odalisca se dissipando em meio à escuridão acima de nossas cabeças. Antes de chegar à tenta, me sentei em um tronco caído sobre a areia, próximo à fogueira.

Ajeitei minha bunda sobre o tronco seco, finquei os pés na areia fofa e fiquei quieto observando o movimento das pessoas. Eu pretendia me aproximar, pegar uma bebida e entrar no clima, talvez fumar mais um cigarro de maconha. Mas naquele instante a minha viagem era o contato com a natureza, respirar a brisa fresca, sentir a areia nos pés.

Fazia anos que eu não sentia a areia da praia nos meus pés. Morando em São Paulo e trabalhando como posto de atendimento da prefeitura, passo o dia inteiro com os pés apertados dentro de um sapato, e sentir os pés em contato com a areia é uma sensação libertadora. A última vez que tive uma experiência semelhante foi quando viajei pro Rio de Janeiro e visitei a praia de Ipanema. Areia branca, céu claro, aglomeração de pessoas, vendedores oferecendo os mais diversos itens. Visitar a praia carioca foi uma experiência bacana. Pelo menos até eu ter o celular roubado por um bando de filhos da puta que passou fazendo arrastão.

Na Ilha do Mel o clima era outro. Durante o dia, o número de banhistas era pequeno e não havia nenhum vendedor na praia. Nem vendedor de sorvete, nem vendedor de água, nem hippies com mostruário de bijuterias feitas de cobre.

Não demorou muito e se aproximou um cara com um cigarro entre os dedos e um copo nas mãos.

“Ei, piá! Belezinha?”

Antes de responder, naqueles pensamentos que se passam na cabeça num átimo de segundo, sorri pra mim mesmo ao ouvir a expressão “ei, piá”. Não era a primeira vez que alguém me cumprimentava daquela forma e ao meu ouvido paulistano soava estranho.

Era um cara com expressão amistosa típica de pessoas que gostam de puxar conversa com desconhecidos.

“Prazer, piá. Sou o Júlio. Eu vi você com uma galera na trilha hoje. Faz tempo que chegaram na ilha? Bem-vindo ao paraíso!”

A voz dele era lenta e as palavras saíam em meio à fumaça com cheiro de erva queimada.

“Sabe, eu vivi a vida toda em Curitiba, mas, cara, não tem vida melhor do que viver aqui.” Prosseguiu ele antes de me dar chance de responder à pergunta inicial.

Eu conheço pouco Curitiba. Apesar de ser a capital mais próxima de São Paulo e oferecer atrações interessantes ao turista, a cidade não está entre as minhas preferidas.

Respondi pro Júlio que havia chegado à ilha pela manhã e ele abriu um sorriso largo e ingênuo.

“Então você já tem um guia. Vou mostrar pra você  tudo o que tem de bacana por aqui!”

Eu sabia que no dia seguinte o Júlio nem se lembraria da promessa, mas agradeci e dei um trago no cigarro de maconha que estendeu na minha direção.

“Já experimentou chá de cogumelo, piá? Cara, o chá abre a nossa mente.”

Respondi que não e ele prosseguiu:

“O chá faz a gente perceber o mundo real, coisas que a gente não vê em estado de letargia do dia a dia.” Ele estendeu o braço e apontou na direção do morro ao fundo. “Você sabia que aquele morro tá respirando? Você não consegue enxergar, mas ele respira. Se você experimentar o chá, você vai conseguir ver os morros respirando, o colorido radiante do céu em todo o seu esplendor e as plantinhas acenando pra você.”

Deixei escapar uma risada. Será que ele realmente acreditava no que ele estava dizendo ou apenas queria zoar com a minha cara?

“Tô falando sério, piá! O mundo é nosso palco e as plantas são a nossa plateia. Deus planejou tudo!” Ele deu um trago no beck e soltou a fumaça devagarinho. “Deus planejou tudinho!”, concluiu.

Depois de alguns segundo de contemplação do nada, ele estendeu o copo que segurava e me ofereceu. Era caipirinha de cataia, típica da ilha. Algumas pessoas dizem que a bebida tem gosto de desinfetante de lavanda, mas o sabor me agradou. Dei mais um gole na bebida e devolvi pra ele.

Enquanto o Júlio continuava tentando me convencer sobre as propriedades transcendentais do chá de cogumelo, um casal se aproximou da gente. A garota vestia uma calça jeans rasgada do joelho, tênis Nike de cano alto e uma blusa com capuz. O rapaz, um short jeans, chinelo e camiseta regata escura, talvez preta ou azul, não dava pra saber.

Júlio deu uma puxada no cigarro com força e soltou a fumaça pelo canto da boca. A brisa suave vinda do mar levou a fumaça na minha direção, me envolvendo com o cheiro característico de mato queimado. Respirei fundo e levantei a cabeça na direção do céu. Uma estrela-cadente cortou a vastidão iluminada em cima de nossas cabeças e seguiu em direção ao interior da ilha.

“E aí, galera! Estão a fim de bala? Temos uma boa aqui.” disse a garota ao se aproximar.

“Tô de boa”, o Júlio respondeu fazendo um gesto negativo com o indicador, sem esboçar o sorriso amistoso dele.

O casal não insistiu. O carinha se despediu com um aceno de cabeça e voltaram vagarosos na direção da tenda.

“Esses turistas do caralho!” Júlio parecia incomodado, mas manifestou sua irritação sem alterar o tom da voz ou a velocidade das palavras. “Essas porras saem dos quintos dos infernos e vêm até a nossa ilha oferecer essas porcarias sintéticas!”

Ele deu um trago no cigarro e segurou demorado antes de soltar a fumaça. Depois se virou para o meu lado e ajeitou o pé esquerdo sobre o tronco da árvore.

“Pena que aqui na ilha é difícil de encontrar o chá. No continente é mais fácil comprar cogumelos, mas aqui rola mais beck, erva, sabe como é”. Ele coçou o joelho com a mão que segurava o cigarro e prosseguiu: “Você vai embora quando? Vou ver se consigo o cogumelo e te chamo pra tomar comigo, aí você vai enxergar o mundo como ele é de fato” Ele sorriu e apontou com a cabeça na direção da tenda. “Mas, na falta de cogumelo, vou ali ver se consigo outro beckzinho porque o meu já tá no osso.”

Fiquei observando enquanto o Júlio se afastava afundando os pés descalços na areia. As histórias sobre os efeitos do chá me deixaram curioso e fiquei imaginando se eu o encontraria de novo e se teria a oportunidade de experimentar. Quem sabe eu o encontrasse em outra balada, em outro canto da ilha. Mas, muito provavelmente, só ia rolar caipirinha de cataia e cigarro de maconha, nada que eu já não tivesse experimentado.

LEIA TAMBÉM

A maioria das queixas servem apenas para estatísticas da polícia. Apen...

“Valei-me, meu Padim Ciço, que a priquita de Celina está se abrindo!” Gritou uma mulher

Mas o universo parece conspirar contra a felicidade das pessoas. Até hoje me pergun..