Amigos. Ah, os amigos…
Uma gente curiosa que a gente vai juntando pela vida, como quem acumula migalhas na gaveta da cozinha, algumas úteis, outras nem tanto, mas todas com alguma história pra contar. Tem o amigo de mesa de bar, que te ouve despejar as lamúrias da semana e, entre um gole e outro, talvez te devolva uma frase que sirva de epígrafe pra sua própria mediocridade. É o confidente das suas piores decisões amorosas e das melhores rodadas de cerveja.
Tem o amigo de viagem, aquele que viu você na sua versão mais desgrenhada, com mau hálito matinal e uma camisa amassada há três dias, e ainda assim não te deserdou. O camarada que dividiu com você a ânsia de vômito no avião e a euforia de uma paisagem nova, efêmera como a própria felicidade. O amigo de futebol, que se descabela ao seu lado por um impedimento duvidoso e que, na derrota, te oferece aquele silêncio cúmplice que só o fracasso coletivo é capaz de gerar. Existem os amigos de swing, mas desses não me pergunte detalhes, a vida já é complexa demais sem a gente precisar entender todas as ramificações do desejo alheio. Mas o fato é que, até pouco tempo, eu jurava que meu inventário de relações humanas estava completo. Engano meu.
A vida, imprevisível pra cacete, sempre te reserva um personagem novo pra sua comédia particular. E foi assim que descobri o amigo de hall de prédio.
A coisa começou de um jeito bem prosaico. Um dia qualquer, eu estava ali, no purgatório que antecede a ascensão do elevador, com o humor azedo como café requentado. Um daqueles dias em que a vontade é de enfiar a cabeça num saco e fingir que não existe. E foi justamente nesse momento de isolamento voluntário — ou involuntário — que ele apareceu, saindo do elevador, e, com aquela percepção, indagou: “Aconteceu alguma coisa, cara?”
Não foi uma pergunta inquisidora, mas uma constatação, quase um convite ao desabafo. Minha primeira reação foi disfarçar, mas a observação me desarmou, e um esboço de sorriso forçado atravessou minha cara. Aquela pequena interação abriu uma fresta.
A gente acabou engatando uma conversa ali mesmo, nas poltronas que parecem mimetizar uma sala de espera existencial, e o tema logo tomou novos rumos, como a vida no prédio, os perrengues da vida, as vantagens do bairro e porção de coisas que não tinham absolutamente nada a ver com o motivo que nos fez começar aquele diálogo. Dali em diante, os encontros no hall viraram pequenos rituais. Breves, quase mecânicos, mas sempre com um quê de surpresa.
O mais interessante é que a gente conversava sobre coisas que nunca surgiram nas minhas mesas de bar com os amigos de cerveja. Com ele, eu trocava segredos sobre como lidar com o síndico, com os filhos da puta de vizinhos barulhentos, ou do mercadinho do prédio. Eram assuntos de gente que compartilha um mesmo retângulo de concreto, com suas pequenas vitórias e derrotas anônimas.
No começo, confesso, flertei com a ideia de que essa amizade de hall poderia evoluir. Aliás, não apenas flertei, mas desejei que isso ocorresse. Pensei: “Maravilha! Um amigo a um elevador de distância. Pra tomar um café sem marcação prévia, pra ver futebol ou pra dividir a pizza de vez em quando”. A sintonia era boa, as conversas fluíam com a naturalidade de quem se conhece há anos, ou de quem não se importa em disfarçar. As risadas eram genuínas, e havia uma cumplicidade estranha que nascia ali, entre o sobe e desce do elevador e as poltronas do hall.
Mas a vida, essa puta incansável na arte da filhadaputice, logo me mostrou que nem toda semente de amizade vira árvore frondosa. Algumas são tipo bonsais: bonitas, bem cuidadas, mas não crescem, não se expandem, não tomam o espaço que a gente gostaria. Nossa amizade, por mais agradável que fosse, ficou estacionada no hall.
Nunca um convite pra um café no apartamento de cima, nunca um “vamos ali?”. A gente se encontrava, sentava nas poltronas, desfiava nossos assuntos “condominiais”, ria das desgraças alheias (e das nossas), e depois, cada um pro seu apartamento. Como se houvesse uma fronteira invisível, uma linha imaginária que nos impedia de levar a relação pra outro nível, pra outro andar.
E, quer saber? Descobri que isso é perfeitamente normal e, de certa forma, até poético. A amizade de hall de prédio tem suas próprias regras, um código de conduta não escrito. Ela não exige a intimidade das confidências noturnas, nem a disponibilidade dos almoços de domingo. Embora rasa, é uma amizade leve, despretensiosa, que serve pra pontuar a rotina com um mínimo de humanidade. Um breve respiro, um rosto familiar no meio da pressa desalmada da cidade grande.
É o tipo de amizade que te oferece uma dose rápida de conexão, sem a complicação das relações que demandam investimento pesado. É como um energético social, um shot de afeto que te alimenta o suficiente pra seguir em frente, sem pesar na consciência. E, de certa forma, é a prova de que a amizade não precisa ser sempre uma maratona exaustiva. Às vezes, um bom pique no hall já resolve o problema.
Então, sim, a minha coleção de amigos ganhou uma nova e valiosa figura: o amigo de hall de prédio. E, embora ele não tenha me convidado pra ceia de Natal nem saiba qual foi o meu primeiro trauma de infância, me proporcionou, e continua proporcionando, momentos de leveza e camaradagem que, no fim das contas, são igualmente importantes. Porque a vida, meus caros, é feita tanto de grandes dramas quanto de pequenas, mas essenciais, gentilezas. E às vezes, as pequenas gentilezas que a gente encontra sentada numa poltrona de hall já valem o ingresso do espetáculo.