POLÍCIA PARA QUEM PRECISA

“Fui assaltado e levaram meu celular e meu relógio”, disse ao escrivão indiferente atrás de sua mesa azul Bic, coberta de papéis, carimbos e canetas.

A sala exalava um odor de mofo, não de parede mofada, mas de papéis ou tecido molhado, algo do gênero. Enquanto o escrivão digitava no teclado com letras apagadas, instintivamente levei a mão ao bolso pra pegar o celular, mas lembrei que um filho da puta com um boné da Nike tinha levado meu aparelho. O sentimento de perda cedeu lugar ao ódio. A gente trabalha como condenado para conseguir comprar o que queremos, e aí vem um filho da puta armado e leva tudo em menos de um minuto. Filho da puta do caralho!

Apoiei a palma da mão sobre minha coxa e fiquei observando o escrivão. Seu queixo proeminente, coberto por pelos ralos, lhe conferia uma aparência juvenil. Uma observação mais cuidadosa, no entanto, permitiu-me encontrar sinais de que ele já passava dos trinta anos. As linhas de expressão disfarçadas pela armação marrom dos óculos e as manchinhas brancas nos braços, quase ocultas sob os pelos, denunciavam sua idade.

Enquanto ele digitava, observei a morosidade na digitação, como se sofresse de uma espécie de analfabetismo digital, o que me fez lembrar dos velhos digitando na tela do celular com apenas o dedo indicador. Os movimentos lentos dos dedos rígidos demonstravam completo desinteresse pelo que eu havia relatado. Fiquei imaginando por que ele agia daquela forma. Talvez por ser funcionário público, talvez por estar enfadado de ouvir relatos semelhantes todos dias, a todo instante. Mas não consegui desenvolver nenhum tipo de empatia. Não valia a pena.

“Você sabe que pode fazer o boletim de ocorrência online, não sabe?” perguntou ele.

Respondi afirmativamente e expliquei que, por estar na rua sem meu celular, não pude fazer o boletim pelo site e por isso vim pessoalmente.

“E qual era a marca?” indagou ele, em tom indiferente.

“Samsung”, respondi.

“Preciso de uma descrição mais clara. Marca, modelo, esses detalhes.”

O sujeito não havia se dado ao trabalho de formular a pergunta completa, mas achava-se no direito de cobrar detalhes! Muito provavelmente, se eu tivesse dado todos os detalhes, ele ia reclamar do excesso de informação. Passei as informações solicitadas e, enquanto ele digitava lentamente nas teclas com as letras gastas, observei o vasinho de suculenta sobre o arquivo azul e desgastado no canto da sala. O vasinho era uma mistura de suculentas, com folhas em diversos formatos e tons que variavam do laranja ao azul-celeste. Concluí que as plantas eram artificiais, pois suculentas precisam de sol; caso contrário, as folhas começam a apodrecer.

“Era um Apple Watch, Citizen, Casio, Technos…?”

Excetuando os relógios tradicionais, quando se fala de smartwatches, as pessoas parecem conhecer apenas o da Apple com seu estilo antiquado de bolacha água e sal.

“Era um Galaxy Watch 6, da Samsung”, respondi com orgulho próprio de usuário convicto de Android.

Ele repetiu a marca de forma pausada e levantou levemente os olhos para o canto superior esquerdo, como se tentasse se lembrar do gadget.

Decorrido não sei quanto tempo e tendo respondido a todas as perguntas feitas pelo escrivão, ele apontou o indicador na direção de um banquinho preto de plástico ao lado da porta de entrada.

“Pode aguardar naquele banco que logo um investigador virá conversar com você.”

Eu sabia que ia tomar outro chá de banco, mas o fato de me afastar daquele sujeito me deu certo alívio.

Mais uma vez enfiei a mão no bolso à caça do meu celular e, novamente, veio aquela sensação angustiante de perda. Apanhei uma das revistas espalhadas na mesinha ao lado a fim de me distrair enquanto aguardava. Era uma revista velha sobre lugares turísticos e, a julgar pelas páginas amareladas e amassadas, devia ser uma publicação antiga, o que me fez lembrar do consultório da minha dentista.

Um homem engravatado e de aspecto austero entrou pela porta e seguiu pela delegacia adentro. Minutos depois, a mulher da limpeza, segurando um balde na mão e arrastando uma vassoura atrás de si, veio da direção oposta. Ela trajava um uniforme azul com colarinho laranja, uma junção de cores chamativas e de mau gosto. Mas parecia simpática. Cumprimentou-me com a cabeça ao passar por mim e começou a varrer a escadinha da entrada, de cima para baixo, cantarolando uma dessas músicas chatas de funknejo, forronejo ou qualquer coisa semelhante.

Os ponteiros do relógio fixado na parede em frente à porta de entrada giravam de forma pesada, mais lentos que o habitual.

Quando voltei os olhos para a revista de viagem, lembrei-me das fotos que tinha no celular roubado, fotos de Salvador, minha última viagem. Fiquei me maldizendo por não ter feito o backup das fotos. Poderia ter salvo no PC, poderia ter enviado para o Google Drive ou ter colocado em um pendrive, mas não! Deixei apenas no cartão de memória do aparelho e lá se foram as últimas fotos tiradas com a minha namorada.

Um japonês se aproximou sorridente. Tinha os olhos saltados, um cavanhaque ralo e uma atitude solícita.

“Sou o investigador Márcio”, apresentou-se, estendendo a mão na minha direção. “Já estamos cientes do seu caso e pode ficar tranquilo que vamos cuidar de tudo.”

Ele consultou o relógio, um smartwatch da Samsung, parecido com o meu, mas em versão mais recente. Se eu fosse funcionário público, com certeza teria comprado um daqueles, mas um trabalhador da iniciativa privada não podia se dar o luxo de ficar comprando todo modelo novo de gadget que surge a cada dia. Depois de alguns segundos olhando para o relógio, ele deu um tapinha nas minhas costas.

“Pode ficar tranquilo porque vamos fazer de tudo para pegar os bandidos e recuperar o seu celular.” Ele indicou a porta de saída com a mão.

Saí da delegacia sem muita confiança. Apesar de o investigador ter se mostrado solícito, eu sabia que essa era a sua função, mas isso não significava que ele realmente iria atrás dos bandidos. A maioria das queixas serve apenas para estatísticas da polícia. Apenas isso.

Naquele dia, eu não fui trabalhar. Estava esgotado por causa do assalto e cansado pela espera na delegacia. Voltei para casa, fiz um chocolate quente e liguei a TV na Netflix. No dia seguinte, eu compraria outro celular. Meu vizinho sempre aparece com algum Samsung ou Motorola a preço de banana…

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