Bateu saudade. Daquelas que chegam sem aviso. Me lembrei de situações, de frases soltas que chegaram desconexas, distantes, como se pertencessem a outra vida. As lembranças são assim: quanto mais o tempo passa, mais elas escorrem, fugindo como areia entre os dedos. Aquelas imagens que um dia foram tão vívidas em nossa memória se tornam opacas; faltam pedaços, as cores se apagam, e os contornos, lentamente, se desfazem.
Num gesto quase automático, puxei o celular do bolso e abri a galeria de fotos, na esperança de encontrar algo que trouxesse de volta aquilo que a memória insistia em deixar escapar. Mas tinha pouca coisa: meia dúzia de fotos mal tiradas, não mais que isso.
Felizmente — ou infelizmente, hoje em dia encontramos mais fotos nas redes sociais do que no próprio celular. Abri o Instagram e procurei pelo perfil. Dezenas de fotos surgiram na palma da minha mão. O sorriso contido, as tatuagens que cobriam todo o corpo, as viagens sobre a Harley Davidson, as gravuras penduradas nas paredes da sala. E, pouco a pouco, as lembranças foram se recompondo. Uma a uma, como peças de um quebra-cabeça se encaixando uma após a outra.
Entre tantas imagens postadas, figurava uma nossa ao lado do piano, bebendo vinho nas taças compradas em um leilão virtual.
Curiosamente, não foi a imagem que veio primeiro, foi o cheiro. Um cheiro forte, inconfundível, de erva queimada, misturado com o perfume cítrico do aromatizador que ficava no canto da sala, próximo à porta de vidro que dava acesso à sacada. É curioso, mas os odores parecem resistir ao tempo. Ficam ali, vivos, quase tocáveis, como se morassem em algum canto escondido da nossa memória.
Entre um gole e outro, uma cheirada na carreirinha do pó branco sobre o piano. Foi a primeira vez que experimentei a droga. Mas não senti nada, achei sem graça e não quis cheirar de novo. Ele, ao contrário, parecia sentir uma necessidade crescente, como se, de algum modo, aquele pó preenchesse algo que, sem ele, ficava vazio demais. Conforme confidenciou certa vez, gostava de usar porque se sentia mais à vontade, conseguia expor os sentimentos, conseguia sorrir.
Continuei rolando o feed até encontrar as fotos mais antigas, postadas desde 2014, imagens que mostravam não só as viagens, mas, também, uma vontade quase desesperada de viver. Catmandu, Nova Déli, Veneza, Machu Picchu, Atenas, Santiago. Era como se cada destino fosse uma fuga. Ou, talvez, uma busca. Difícil dizer.
Nos últimos tempos, ele adotou uma rotina mais reclusa. De casa pro trabalho. Do trabalho pra casa. Ocasionalmente, um almoço com a família. Outras vezes, a gente saia, mas nada das noitadas de antigamente. No máximo, um barzinho discreto, meia dúzia de cervejas, alguma risada, e só.
Às vezes, a gente passava a noite juntos filosofando, conversando sobre a vida, sobre literatura, sobre música, sobre amores e desamores. Eu com uma taça de vinho, cerveja ou gim tônica com o alecrim cultivado na sacada minúscula do apartamento. Ele, invariavelmente, com um cigarro a cada meia hora, uma carreira de pó, um beck, e um gole espaçado na bebida, sempre seguido de uma frase meio solta, meio triste, que ficava ecoando no ar.
Foi uma amizade bonita, verdadeira. Embora — e aqui faço um mea-culpa — eu nunca tenha conseguido ser aquele ombro que ele talvez esperasse. E não por falta de empatia, o fato é que até hoje me pergunto o porquê de nunca tê-lo abraçado nos momentos em que ele se abria comigo. Amizade entre homens tem dessas coisas. Mesmo sabendo que o outro cara precisa ser abraçado, precisa se sentir acolhido, o receio de ser mal interpretado, de ser chamado de veado, nos leva a sufocar o abraço, a segurar qualquer manifestação de carinho.
Depois daquela foto alegre no feed do perfil do Instagram, ainda nos encontramos uma última vez, uma noite que, se eu soubesse, teria sido registrada em cada detalhe. Passamos a noite revisando os textos do livro que ele pretendia publicar. Foi uma noite diferente. E ele cheirou menos, queimou menos. Parecia mais leve. Ou, quem sabe, era a impressão que ele queria passar. Nenhuma foto. Nenhum vídeo. Só a lembrança. E, sem saber, aquele foi o último sorriso que vi dele.
Sinto falta. Muita falta. Das conversas infinitas sobre literatura, das viagens filosóficas que a gente fazia sem sair do sofá, do sorriso contido, meio de canto, que parecia sempre esconder mais do que revelava. Sinto falta das espirais de fumaça que subiam lentas, tristes, como se dançassem um lamento silencioso antes de se desfazerem no pendente de luz sobre o piano. Sinto falta do cheiro da maconha que se misturava ao perfume cítrico do aromatizador no canto da sala. Sinto falta…