TÁ FODA!

Primeira corrida do dia. Local de partida: Hospital Santa Marcelina, zona leste da capital.

O passageiro entrou chateado, percebi assim que ele apontou a cabeça janela adentro para confirmar o meu nome. Motoristas de aplicativo gostam de conversar e eu não sou diferente, entretanto, a fim de não me tornar inconveniente, eu observo a atitude do passageiro antes de iniciar qualquer conversa. E, apesar da expressão entristecida do rapaz, percebi que ele precisava desabafar, estava nítido em seus olhos.

“Tudo bem, rapaz?” perguntei. “Trabalha no hospital?”

Ele negou com a cabeça antes de responder.

“Vim fazer uma visita.”

A resposta concisa não me permitiu saber se ele estava ou não disposto em prolongar a conversa. Ele observou algo pela janela do carro e voltou os olhos para o celular. Antes as pessoas interagiam mais, conversavam sobre assuntos banais, mas a segunda onda da pandemia parece ter deixado todo mundo mais reservado. 

“Faz tempo que você trabalha como motorista de aplicativo?” perguntou ele após uma pausa longa.

Esta pergunta é clássica, provavelmente a que mais ouço desde quando comecei a trabalhar como motorista e nem sempre assinala o desejo de bater papo. Na maioria das vezes, não passa de mera curiosidade.

“Não muito, cinco meses, indo pra seis”, respondi.

O rapaz ficou calado mais uma vez olhando para a tela do celular e digitando rapidamente. Minutos depois, ele comentou em tom tristonho, sem levantar a cabeça.

“Meu pai também trabalhava como motorista, só que ele gostava de trabalhar de noite.”

Desta vez, sim, o rapaz demonstrou interesse em iniciar um diálogo.

“Bacana! Ele faz tempo que ele deixou de trabalhar como motorista? Deve ter sido por causa do aumento do combustível. Conheço vários motoristas que desistiram da profissão por causa disso.”

Ele coçou a testa por alguns segundos.

“Meu pai foi assassinado cerca de três meses atrás… lá em Diadema. Parou em um farol na Piraporinha e dois filhos da puta se aproximaram de moto. A gente conseguiu a gravação das câmeras de uma padaria, mas não foi possível identificar a placa” ele suspirou fundo. “Se a vítima fosse algum empresário a polícia tinha encontrado os assassinos no mesmo dia, mas sabe como é.”

Fiquei em silêncio por uns instantes. Pensei na minha própria situação como motorista, tenho dois filhos, um ainda pequeno, e a minha mulher que já está desempregada desde o início da pandemia. Quando tinha meu emprego formal, eu conseguia proporcionar certas regalias à minha família, inclusive pagar seguro de vida para qualquer eventualidade. Depois que me tornei motorista de aplicativo, o sustento da minha família passou a depender integralmente do que eu ganho no dia a dia. 

“Caramba, filho! Eu sinto muito pelo que aconteceu com o seu pai. Imagino que não deva estar sendo fácil pra você.”

Olhei pelo retrovisor e vi seus olhos marejados.

“Tá foda!”, respondeu, enfatizando a última palavra.

Seus olhos avermelhados se esforçavam pra não deixar as lágrimas rolarem. Sua boca fina se tornou um risco quando ele pressionou os lábios trêmulos. Tive vontade de parar o carro e abraçá-lo, enfim, fazer algo pra confortar o garoto naquele instante. Ele devia ter uns dezoito ou vinte anos no máximo, idade pra ser meu filho e, de certa forma, senti como se o fosse.

“Semana passada a minha mina me deixou”, prosseguiu ele. “A puta me trocou por um carinha que trampa com ela”, queixou-se. “O pior é que apesar de tudo eu ainda sinto falta dela, ainda mais agora.”

Diante da perda do pai o pé na bunda era o de menos. Quem nunca levou o pé na bunda da pessoa que amava? Eu levei vários. Na época do colégio fiquei uma semana de cama, sem comer e sem disposição pra fazer qualquer coisa. No meu caso, já estava namorando a vaca há mais de seis meses e, aparentemente, a gente estava indo bem, mas do nada ela me trocou por outro. Enfim, todo mundo já passou por situação semelhante, mas vida que segue.

Achei melhor não contar pro garoto que eu já havia passado pela mesma situação. Ele já estava fodido e fazer comentários sobre situações desagradáveis não ia ajudar em nada.

“Foda isso!” eu disse. “Situação chata pra caralho, mas logo tudo se ajeita, só não pode se entregar.”

Ele balançou a cabeça e voltou a olhar a tela do celular.

“Não sei, não. Como se não bastasse, a minha mãe está internada em estado grave por causa desse maldito covid… 65% do pulmão já está comprometido”, lamentou após alguns instantes. “Sem pai, sem namorada e quase sem mãe”, ele suspirou fundo. “Meu único parente é um tio veado que mora no Rio de Janeiro”, concluiu em tom lamentoso.

Preferi ficar quieto, apenas imaginando a dor que o garoto devia estar por dentro. Olhei pelo retrovisor outra vez e vi que estava digitando rápido no celular, talvez conversando com alguém pelo Whatsapp.

“Tem filhos, mano?” Perguntou ele depois de uns instantes.

Respondi que sim e, numa tentativa vã de distraí-lo, fiz comentários adicionais sobre a idade dos meus filhos e sobre o que eles gostavam de fazer.

“Eles têm sorte de ter um pai” disse vagamente, voltando os olhos para o celular.

Concordei com a cabeça e seguimos calados até chegar ao destino. Quando estava parando o carro em frente a um sobrado com um muro alto coberto por ardósias, o celular dele tocou. O garoto atendeu apressado e desceu do carro sem se despedir, segurando o celular na orelha com a mão esquerda e coçando a nuca com a mão direita. Fiquei observando enquanto ele se afastava do carro, depois soltei o freio e deixei o carro descer a rua devagarinho. Fiz o retorno na esquina e voltei no sentido contrário. O garoto estava sentado na calçada com o rosto enterrado nos joelhos e as mãos sobre a cabeça. Acuado, solitário.

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