Levantei da cama apressado e me olhei no espelho. Algo estava diferente, só não sabia dizer o quê. Não me recordo da temperatura da água, nem de ter me enxugado após o banho. Na verdade, não consigo me lembrar dos detalhes e nem da sequência dos fatos. Me recordo apenas de ter olhado o Whatsapp antes de fechar a porta da sala, de enfiar o celular no bolso da jaqueta e ajeitar o cabelo. Estes são os únicos fatos concatenados desde o momento em que me levantei até eu ter saído de casa.
Como sempre fazia, parei na padaria da esquina a fim de tomar o café da manhã. Sentia o estômago vazio e necessitando de alguma refeição. Me senti deslocado. Não que fosse expulso, mas sabe aquele tipo de deslocamento que só o tempo sabe fazer? Havia muitos jovens por ali, espalhados pelas mesas, vestindo roupas despretensiosas e falando alto, cheios daquela vivacidade que parece natural quando se tem vinte e poucos anos. Já os poucos velhos presentes pareciam saídos de um catálogo de aposentadoria frustrada: carrancudos, distantes, com aquele olhar esmaecido de quem já testemunhou o dinheiro da previdência evaporar da conta e o preço do café subir mais vezes do que gostaria de lembrar.
Por que será que os jovens carregam essa beleza intrínseca, quase automática, e os velhos ficam apenas com as sobras? Rugas, cabelos brancos, semblantes cansados… A pergunta me atingiu com certa violência. Fiquei perturbado com a constatação. Preferi me sentar ao fundo, longe dos outros, numa mesinha discreta, de onde eu podia observar sem ser observado. Por que os jovens possuem uma beleza intrínseca e os velhos somente rugas, cabelos brancos e aparência apática? Fiquei perturbado com a constatação e preferi me sentar afastado das demais pessoas, numa mesinha ao fundo, de onde eu podia observar a todos e não ser observando por ninguém.
Uma garota morena e nariz adunco apanhou um pedaço de pão e levou à boca do rapaz sentado à sua frente. Era um rapaz albino com o rosto coberto de espinhas. Espinha protuberantes, daquelas avermelhadas com as pontas amarelas, prontas a explodir a qualquer instante. Pelos gracejos deviam ser namorados. E formavam um belo casal. À minha esquerda, um rapaz de barba rala e uma moça de cabelo ruivo conversavam sorridentes. Ele vestia uma camisa xadrez, não me recordo a cor, e uma calça chino apertada. A garota trajava um conjunto esverdeado ou azul, uma calça de boca larga e tailleur acinturado. O terninho não fechava na frente, mas estava elegante.
Enquanto o rapaz da padaria vinha na minha direção com o café na bandeja, fiquei observando-o com o canto dos olhos. Vestia uma calça jeans e uma camisa polo escura. Era magro, muito magro, e calça amontoava na bunda, ou melhor dizendo, no lugar onde deveria haver uma. Os olhos projetados para fora pareciam avançar na minha direção, mas havia algo de belo nele.
Quando eu era jovem, aquelas pessoas seriam reprovadas em qualquer concurso da beleza. Agora, todas parecem obras de arte modernas: meio tortas, mas cheias de significado.
A percepção de beleza nos jovens é curiosa. Com o passar dos anos, vamos ficando menos exigentes, ou mais generosos, talvez, e já não enxergamos a feiura com a mesma precisão de antes. Claro que ainda existem jovens cuja aparência desafia a estética com coragem, mas mesmo nesses a juventude empresta um certo brilho. Um velho vê beleza até em espinha inflamada, desde que ela pulse com vitalidade.
Chegando no escritório, olhei a foto pendurada na parede. Minha esposa sorrindo e segurando o Gui nos braços. Mas não os tinha mais comigo. Ah! Como a Valquíria era bela! O tempo apagou seu rosto da minha memória, como um arquivo corrompido, apenas aquela foto me trazia alguma lembrança, ainda que desbotada. Pele clara com algumas sardas nas bochechas, cabelo liso puxado para trás das orelhas e um sorriso largo no rosto. Desejei voltar no tempo a fim de reencontrá-la. Mas o tempo é um bandido cruel, que rouba de nós tudo o que nos é querido e depois foge sorrateiramente.
Foi aí que percebi a razão da beleza das pessoas que encontrei pelo caminho. Elas tinham a beleza da juventude, beleza que de mim já havia fugido com o passar dos anos. Os jovens não têm essa percepção do frescor da juventude. Por isso eles fazem distinção entre uma pessoa bonita e uma pessoa feia. Depois de certa idade, passamos a perceber apenas o frescor da juventude, a beleza em essência, a ausência de sulcos na pele, a dentição espaçada, o sorriso largo, o olhar vívido.
Olhei o retrato outra vez e suspirei fundo. As lágrimas chegaram aos meus olhos, enuviando minha visão. Cruzei as mãos sobre a nuca e chorei calado. Senti uma amargura pungente e repentina no meu peito.
Acordei soluçando, como um dramalhão mexicano, com o coração batendo em ritmo frenético. Olhei pro lado: Valquíria dormia com uma expressão angelical no rosto e um cabelo despenteado, feio até, mas real, harmonioso. Senti o perfume de seu cabelo e a quentura de sua perna aquecendo a minha. Era o calor que eu precisava para aquecer o meu coração naquele instante. Suspirei aliviado, acendi o abajur e olhei na direção do berço, no outro canto do quarto. Gustavo dormia abraçado com o ursinho de pelúcia encardido. Percebi que eu ainda não era um espectro solitário vagando entre lembranças, era só um homem de meia-idade com um coração amassado e um pijama de flanela.