PROSEANDO

CONTOS, CRÔNICAS, ETC.

Dois Idiotas, Quatro Judeus e um Stand Up no Metrô

Sábado. Bom Retiro fervendo, calor daquele que parece que alguém esqueceu o aquecedor ligado. Eu e meu irmão, kipá na cabeça, roupa casual pro Shabat. O estilo não combina com roda de samba nem com churrasco, mas é perfeito pra rezar e andar tentando não ser notado, o que é impossível quando você está com kipá no Bom Retiro.

Caminhamos. A sinagoga já tinha ficado para trás, o metrô se aproximava, e o cheiro do pão coreano, vindo da padaria perto da Praça Cel. Fernando Prestes, parecia nos puxar pelo nariz. Cruzamos a praça até a escada da estação. Se São Paulo fosse um organismo, o metrô seria o intestino: você entra no vagão e desaparece, vira célula, some no sistema digestivo coletivo. Ali dentro, a turma do fone de ouvido, do sono acumulado, do cabelo ainda molhado, do WhatsApp. Tudo normal, tudo tranquilo, a paz previsível da rotina.

Até que entram dois caras de barba, sobrancelhas grossas e olhar de poucos amigos. Sabe aquele feeling de filme de ação que começa estranho? Um deles com cara de quem já brigou com o espelho, outro olhando pros lados como se estivesse avaliando alguém, mas não: o interesse era eu e meu irmão, bem ali, em pé, próximos à porta do lado oposto.

Cochicho, cutucada e queixo pra cima, aquele gesto universal do “olha ali aqueles dois otários”. Em seguida, risos debochados. Mesmo sem saber árabe, ficou claro. Tem xingamento que a gente entende no volume, na saliva, na expressão facial; é o tipo de música ruim que ninguém precisa traduzir.

Eu e meu irmão entramos no modo “paisagem urbana”. Não vê, não fala, não sente. Mas os caras, com cara de terroristas, vieram. Andando, encarando, em câmera lenta, como se fosse aquele momento pré-briga nos filmes protagonizados pelo Jason Statham.

Mas o metrô é democrático e, às vezes, tem um cidadão que, por motivos diversos (compromisso, tédio, bondade, preguiça), prefere apaziguar confusão. Três passageiros entraram no modo defesa, aquela mistura de escudo humano e “tô atrasado pro trabalho e você não vai arrumar confusão aqui, não, filho da puta!”.

Os valentões ficaram frustrados, murmurando naquele jeito de quem tenta disfarçar que perdeu o ponto, mas os olhos continuavam na nossa direção, como se dissessem te pego lá fora

Duas estações depois, o metrô para e entram dois grandalhões, que logo identifiquei como judeus porque estavam com kipá na cabeça. Ombros largos, bíceps evidentes e dois metros de valentia. Sabe aquele instante em que você acha que está sozinho no filme e descobre que entrou no gênero buddy movie? Foi o que aconteceu.

Quando nos viram, se aproximaram com um “shabat shalom” amistoso. Contamos o que havia acabado de acontecer e eles, eficazes, deram aquela aquiescência com a cabeça, o que, em São Paulo, significa “bora resolver”. E por que não? Olhamos na direção dos dois homens com aparência de terrorista do Hamás e encaramos. Nesse instante, a quinta série gritou. Apontamos o queixo na direção deles e começamos a rir. Então as palavras saíram como pedras pra eles, mas entre risos pra nós:

Bnei sharmuta!” gritou um dos judeus grandalhões.
Kusemeq!” lançou o segundo entre risadas.
Timtzots li et haboolbool!” vociferou meu irmão.
Por fim, eu, com o peito ardendo, disparei:
Lech lehizdayen!”

Os dois valentões desviaram o olhar e ficaram mudos até o metrô parar na próxima estação. Desceram sem olhar pra trás, apenas aquele olhar meio de lado, de cachorro que caiu do caminhão de mudança, aquela saída envergonhada, frustrada.

No vagão, ficamos os quatro em clima de vitória silenciosa e seguimos conversando sobre banalidades: uso da kipá em público, a judeuzada na região do Bom Retiro e outras coisas, menos o que havia acontecido.

Chegando em casa, abri uma cerveja gelada, sentei na beira da piscina e fiquei pensando: a vida é essa coreografia desengonçada; começa no queixo, vira drama, acaba em riso. Você atravessa São Paulo achando que vai rezar, é empurrado pra uma quase briga e termina rindo de quem se leva a sério demais. O covarde não tem medo de briga; tem medo de ser ridicularizado.

Mas assim é a vida no metrô de São Paulo. Sobe gente de todo canto, entra gente com seus preconceitos, seus medos, suas inseguranças. Às vezes alguém aponta, às vezes alguém ri. E tudo que poderia ser uma tragédia… ou uma comédia. 

Agora, toda vez que entro no metrô, fico imaginando se a cena vai se repetir. Por via das dúvidas, tiro a kipá da cabeça, vai que apareçam outros idiotas querendo confusão gratuita. Também tomei vergonha na cara e comecei a frequentar a academia. Se um dia precisar enfiar a kipá na boca de algum filho da puta simpatizante do Hamás, um pouco de músculo pode ajudar.

Quanto aos insultos que devolvemos aos terroristas, eu sei que você quer saber o que aquilo significava. Mas, sinceramente, se eu explicar, vou ter que colocar tarjas pretas no texto. Então é melhor você perguntar pro ChatGPT, ele não tem medo de traumatizar leitores, nem corre risco de sofrer censura do Instagram.

LEIA TAMBÉM