PROSEANDO
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DIA CHUVOSO
Eram cinco da manhã quando acordei. Lá fora, um silêncio ensurdecedor sendo rompido, eventualmente, pelo farfalhar das folhas do abacateiro plantado ao lado da casa que prenunciava a virada do tempo.
Virei para o lado a fim de abraçar o meu gato, mas Tobiasa minha única companhia tem sido o meu gato, um mascote rajado e com humor do cão. Outros gatos estariam dormindo com o dono, mas Tobias sempre foi muito arisco e eu nunca consegui convencê-lo a dormir comigo, ele é quem escolhe quando e onde quer dormir. Quem tem gato sabe do que estou falando.
Depois de incontáveis tique-taques do relógio pendurado na parede oposta, um trovão raivoso me fez tremer assustado. Quando Viviane estava viva, ela encorajava em dias tempestuosos, mas sozinho eu me sentia amedrontado. É constrangedor admitir, mas raios e trovões sempre tiveram o poder de me deixar acuado. Não me levantei. Puxei o cobertor sobre a cabeça e fiquei em posição fetal enquanto o farfalhar das folhas do abacateiro cedia lugar ao tamborilar dos pingos grossos da chuva confrontando o telhado.
O dia amanheceu escuro naquela sexta-feira fria. Pelas manhãs, as minhas tarefas costumeiras são alimentar o Tobias e regar a minha pequena horta. Naquele dia, entretanto, a chuva já estava fazendo metade do meu trabalho, e Tobias devia estar deitado em algum canto, possivelmente enfiado entre as almofadas do sofá.
Por volta das nove horas, uma musiquinha que me faz lembrar do caminhão de gás começou a tocar debaixo da minha cama. Muito provavelmente eu adormeci com o celular na mão e o aparelho caiu no chão. A campainha insistia.
“Bom dia, sr. Alberto”, cumprimentou uma voz apática do outro lado quando atendi. “É a Vanessa, da clínica Hermos. Posso confirmar a consulta das 10:30h?”
Puta que pariu! Eu tinha me esquecido da consulta com o urologista e justo naquele dia chuvoso e frio pra cacete. Me levantei apressado tropeçando no tapete de tiras vermelhas da beira da cama e corri pro banheiro. Fiz tudo embaixo do chuveiro: escovei os dentes, mijei amarelo, e lavei a cabeça com o shampoo 2 em 1. Nunca tive paciência pra usar shampoo e condicionador, que quando usei pela última vez ainda era chamado de “creme rinse”, um líquido cremoso, rosa e com cheiro insuportável de chiclete de tutti-frutti.
Tobias foi até a porta do banheiro e começou a miar desesperado, como faz todo dia no mesmo horário. Às vezes fico irritado, mas se o bicho não sabe falar.
Me enxuguei rápido e fui enrolado na toalha até o armário da pia. O frio me fez ficar com os pelos dos braços eriçados, a costa gelada e o pinto menor do que já é. Enchi o pote de ração e deixei o bichano matar a fome.
Depois de colocar qualquer roupa escolhida de forma aleatória, comi uma banana prata amassada com aveia, uma fatia de queijo e peguei o celular pra chamar o motorista pelo aplicativo. O preço estava lá em cima, como sempre fica em dias de chuva, preço “dinâmico” como eles dizem. Mas cadê um motorista que aceitasse a corrida? O primeiro corno, depois de cinco minutos de espera, cancelou. O segundo motorista estava lá nos cafundó do judas e ia demorar mais de dez minutos pra chegar. Era muito tempo de espera e, dessa vez, a viagem foi cancelada por mim. O terceiro motorista estava perto, mas o preço continuava dinâmico. Fazer o quê? Eu precisava da corrida e não tinha mais tempo hábil pra ficar escolhendo.
O carro era um Sandero prata, como quase todos os carros de motoristas de aplicativo. Me sentei no banco de trás e fiquei observando o sorriso de satisfação do indivíduo. Era uma satisfação maliciosa causada pelo preço mais alto da corrida. Como fazem todos eles, olhou pelo retrovisor e iniciou a conversa.
“Tá indo trabalhar? Hoje o tempo tá ruim pra sair da cama, né? Eu só vi trabalhar porque os preços estão dinâmicos e eu preciso levar comida pra casa, ainda mais agora que eu sou pai. Cara, eu não imaginava, mas quando a gente se torna pai o pensamento da gente muda. Agora preciso ter responsabilidade, né? Mas é bom, tenho curtido bastante o Joaquim, aliás, Joaquim Henrique pra ser mais exato”.
Ele perguntava e ele mesmo respondia, numa espécie de monólogo infindável, sem se importar se eu queria ou não participar da conversa.
“Sabe, esta não é a minha área e eu nem sou um apaixonado por direção. Sou engenheiro, etc., etc.”
A mesma história de sempre e a impressão que tive é que não existem mais engenheiros no mercado de trabalho, ao que parece, todos eles foram trabalhar como motorista de aplicativo.
“Pra onde o senhor está indo mesmo, pro trabalho, correto?”
Concordei e continuei de cabeça baixa, olhando para o celular e, finalmente, ele percebeu que eu não estava a fim de conversa. Exatos quatorze minutos depois, o carro estacionou em frente a clínica e eu saltei sem mais delongas.
A chuva havia cedido lugar para uma garoa fina. Se eu tivesse aguardado mais um instante antes de chamar o motorista, com certeza o preço não estaria dinâmico e eu teria economizado metade do valor que precisei desembolsar. Mas senões não existem. Nem sei o porquê de existir tal vocábulo na nossa língua, enfim.
Apanhei a senha, aguardei ser chamado pela recepcionista e voltei para o meu lugar. Quinze minutos se passaram e nada de ser atendido. Tirei o celular do bolso e comecei as fotos publicadas no Instagram a fim de me distrair enquanto esperava. Gosto de ver vídeos curtos de receitas ou alguma gambiarra, fora isso não costumo curtir as fotos de ninguém, até porque eu não publico nada e não preciso me preocupar em trocar likes.
Quando percebi, já haviam decorridos vinte minutos e nada de eu ser atendido.
“O doutor está com um pequeno atraso, senhor”, informou a recepcionista ao ser questionada sobre a demora.
Filho de uma puta! Quando eu era barbeiro, esses filhos da mãe não gostavam de ficar esperando, queriam chegar e ser logo atendidos, mas quando precisamos ir até eles, aí a conversa muda. Paisinho de merda esse nosso, com essa mentalidade provinciana onde as pessoas com mais estudo sempre se julgam melhor do que as outras.
Quarenta minutos depois, quando eu já estava com a paciência esgotada e o estômago encostando nas costas, a recepcionista me chamou até o balcão. Provavelmente, eu seria o próximo paciente a ser atendido, pensei.
“Lamento informar, sr. Alberto, mas o dr. Gonzaga teve um imprevisto e não vai conseguir vir atender hoje”, disse ela baixinho, talvez a fim de evitar que os outros pacientes ouvissem. “Mas se o senhor quiser eu posso reagendar a consulta”, concluiu.
Imprevisto?! Por que ele não pegou a porra do celular e não avisou antes? Esses almofadinhas do caralho não estão nem aí para saúde das pessoas, eles só pensam em dinheiro e mais dinheiro! Fiquei puto de raiva, soltei alguns palavrões e saí.
Já do lado de fora, peguei o celular e abri o aplicativo. No céu, o sol que instantes antes começara a aparecer por detrás das nuvens acinzentadas, se escondeu novamente e um pingo grosso de chuva caiu sobre a minha cabeça. Na tela do celular, o aplicativo mostrava vários carros disponíveis na região. Novamente um Sandero, desta vez preto.
“Bom dia, mestre!” cumprimentou o motorista quando entrei no carro. “Está indo pro trabalho agora? Você trabalha com quê? Graças a Deus que ainda temos os nossos empregos… quero dizer, não pretendo trabalhar como motorista de aplicativo por muito tempo. Sou engenheiro e espero voltar logo pra minha área”. Etc., etc., etc.
