BATINA

Carolina conheceu Ernesto na fila do mercadinho do bairro. A fila estava empacada por conta de uma tiazinha que começou a discutir com a moça do caixa sobre o preço do feijão. Não era apenas a moça do caixa que estava perdendo a paciência com a tiazinha, mas as pessoas que estavam na fila começaram a reclamar. Exceto Ernesto, que mantinha um sorriso acanhado no canto da boca e uma aparência zen, como de um monge tibetano.

Ele era um cara bonito, malhado, barba bem cuidada, perfume com notas fortes e aparência amistosa. Enquanto as pessoas reclamavam, ele mantinha a serenidade no olhar. E isso atraiu a atenção dela. Carolina, que estava imediatamente atrás do rapaz, puxou conversa e o assunto fluiu de tal modo que ela nem percebeu quantos minutos passou na fila enquanto a tiazinha briguenta discutia com a moça do caixa.

Ele contou que havia se mudado para o bairro há poucos dias e que ainda não conhecia as pessoas do local. Quando ele passou pela caixa, cumprimentou-a com um beijinho no rosto e se despediu. E enquanto a moça do mercadinho conferia sua compra, ela o observava se afastar.

Carolina voltou para casa com uma sensação agradável e com um sorriso adolescente no canto da boca. No entanto, ao chegar em casa e abriu a porta da sala, a primeira visão que teve foi a imagem tosca do namorado sentando no sofá e coçando o saco. O rapaz era baixo, gordinho, cabelo desgrenhado sobre a cabeça, barba rala e não dava a assistência quando ela queria.

“Trouxe a cerveja, benhê?”, indagou o rapaz sem ao menos se colocar de pé e ajudar a moça com as sacolas.

Eles não moravam juntos, mas aos fins de semana Airton costumava ir à casa dela logo cedo e só ia embora depois do café da tarde. Já fazia algum tempo que ela não estava satisfeita com a situação, mas nesse dia o incômodo foi maior. Conhecer um homem como Ernesto, mas chegar em casa e se deparar um ogro foi decepcionante.

Carolina passou a ir ao mercadinho com maior frequência. Com um pouco de sorte, uma hora ou outra acabaria se encontrando com Ernesto outra vez. E se encontrou. Desta vez a conversa fluiu ainda mais, e ela se lembrou de perguntar ao rapaz com o que ele trabalhava. A resposta foi concisa:

“Trabalho com o povo, ajudando as pessoas.” Respondeu sorriu.

Diante da resposta do novo amigo, Carolina ficou ainda mais apaixonada. “Assistente social”, pensou, “e se trabalha ajudando o povo, só pode ser gente boa!”

Já não era apenas uma admiração ou amor platônico por aquele homem. Carolina sentia um calor subindo por suas pernas quando conversava com ele. Tudo nele a deixava excitada. O perfume amadeirado e másculo, a voz pausada e grossa e até o calor do hálito que chegava em seu rosto. Começou a imagina Ernesto esfregando a barba em seu pescoço e sussurrando palavras safadas em seu ouvido. O sentimento foi se tornando mais intenso, mais frequente, e ela passou ao ponto de imaginá-lo em todos os cantos, em todos os momentos. Quando ela transava com o namorado ogro, era Ernesto que ela enxergava. Quando o namorado esfregava a barba rala em seu pescoço, era a barba cheia de Ernesto que ela imaginava roçando em seu corpo. E quando ela deslizava as mãos pelo peito muxibento do namorado, era o peitoral forte de Ernesto que ela desejava.

Mas a moça cresceu em um lar católico, frequentando missas ao lado dos pais e depois de adulta, mesmo não indo à igreja com a mesma frequência, guardava sua fé nos santos. Por isso o desejo pelo rapaz que conheceu no mercadinho se transformou em culpa. Transar com o namorado pensando em outro homem era pecado, mas deixar o namorado ogro e investir em Ernesto podia ser um murro na ponta da faca. Carolina era uma moça bonita, mas já balzaquiana, e tinha receio de terminar o namoro e acabar ficando sozinha. Airton era mais novo que ela e só mantinha o relacionamento por conveniência, de qualquer forma, ela não estava sozinha.

O sentimento de culpa foi pesando em seus ombros, cada vez mais forte, cada vez mais pecaminoso, cada vez mais digno de punição. Percebeu os pés ficando arredondados e as unhas rachadas. O cabelo, cada vez mais fraco e quebradiço, ao ponto de entupir o ralo da pia sob o espelho. Os peitos, que já não eram grandes, estavam flácidos, com os bicos apontando para os pés.

A fim de apaziguar a consciência, ela resolveu ia à igreja se confessar. Falar com Deus sempre resolve e quem sabe seguindo as orientações do padre sentiria um alívio em sua alma. Sentou no banquinho do confessionário e abriu o coração. Confessou que transava com o namorado imaginando estar transando com o rapaz que havia conhecido no mercado, que imaginava a barba dele esfregando entre seus seios e que no clímax da transa, era o membro do rapaz do mercado que ela imaginava em sua vagina. O padre ficou calado por uns instantes e, então, deu a penitência:

Trinta pais-nossos e vinte ave-marias. E um adendo: frequentar as missas aos domingos.

Rezar os pais-nossos e as ave-marias seria tarefa fácil, mas começar ir às missas aos domingos seria um pouco mais complicado. O namorado era de família evangélica e repleto de tabus e frequentar a missa com ela não seria uma opção. Mas ir sozinha para a igreja aos domingos de manhã e deixar o namorado em casa sem almoço poderia desencadear um desestendimento.

Ponderou, ponderou e resolveu. “Melhor acertar as contas com Deus”. E decidiu ir à missa.

Domingo de manhã Carolina entrou na igreja e se acomodou em um dos bancos do fundo. Os bancos da já estavam ocupados por beatas com véu na cabeça e os bancos do meio, por casais com crianças encapetadas. A igreja estava impregnada com o odor de rosas murchas do casamento do dia anterior, e o som do órgão levava a um sentimento de introspecção que, no caso dela, conduzia a um sentimento maior de culpa. Carolina se ajoelhou e rezou, deixando as lágrimas rolarem de seus olhos enquanto implorava a misericórdia dos céus.

Após alguns minutos de introspecção, um coroinha tocou o sininho de mão e entrou porta adentro, seguido por outro coroinha segurando o evangelho e pelo sacerdote que caminhava em direção ao altar.

Com os olhos marejados ela viu apenas o vulto dos religiosos passando. Mas sentiu o odor de perfume que ficou no ar. O cheiro de rosas velhas foi suplantado por um perfume com notas de tabaco e cardamomo. Não era o cheiro do incenso queimando dentro do turíbulo, era o perfume do padre, que por uns instantes fez Carolina se esquecer do que estava fazendo na igreja naquela manhã.

Ela puxou a barra da blusa para baixo, ajeitou o cabelo atrás da orelha e enxugou os olhos com a manga da blusa. Quando olhou para o homem santo já sobre o altar, ele estava com os braços estendidos aos céus, segurando um crucifixo e com o rosto oculto atrás das mangas largas da batina.

Depois de alguns instantes, o sacerdote desceu o crucifixo e seu rosto ficou à mostra. Nesse instante, um misto de desejo e desespero se apossou dela ao perceber que o padre era Ernesto. 

Carolina não esperou a missa acabar. Fez o sinal da cruz em frente ao peito, beijou o crucifixo que segurava entre os dedos e saiu em passos largos, sem olhar para trás. 

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