DATA LIMITE

Elias deixou a fazenda em meio à cerração. Mal conseguia enxergar um palmo adiante, mas a promessa estava feita e não tinha como voltar atrás. Quando o portão bateu atrás de suas costas, ele mirou com um olhar merencório na direção da choupana, ajeitou o chapéu na cabeça e saiu em passos resolutos.

Esticou o braço que segurava o farolete e elevou até a altura do olhos. Talvez a lanterna iluminasse o caminho adiante. A luz tênue, entretanto, permitiu enxergar apenas o chão de terra batida. Felizmente ele conhecia bem o caminho. Desde criança andava por aquelas ruas e conhecia cada metro daquele chão.

De súbito, um estrondo seguido de um clarão ressoou por sobre a sua cabeça e seguiu veloz sumindo cem metros adiante. Nesse instante, Elias sentiu o chão tremer sob seu corpo esguio e, como num filme, viu sua vida passar diante de seus olhos em fração de segundo.

Trinta anos atrás ele havia contraído núpcias com Poliana, a moça mais bela de Passa Vinte, no interior de Minas Gerais. Ele, homem maduro, na casa dos quarenta, já começava a ter os sinais da idade em forma de sulcos na testa e ao redor dos olhos. Ela, moça bela, pele de pêssego e olhos cor de esmeralda, mal completara seus vinte e cinco anos. Ninguém entendeu o que teria levado Poliana a se interessar por Elias. O pobre diabo não tinha posses, não vinha de família nobre e nem era dotado de beleza.

O fato é que a união se efetivou e mesmo a contragosto, o sogro deu uma festança que durou dois dias e contou com a presença de boa parte dos habitantes da cidade. Foi a última festa da vida de Poliana, uma celebração de despedida. Com o casamento obstinado, o pais deserdou a moça e a rejeitou desde então. Mas, na medida do possível, Poliana foi feliz ao lado Elias. Vida de escassez e trabalho duro na roça, mas o homem lhe devotava amor incondicional. A única infelicidade sua era a ausência de filhos. Nunca conseguiu passar do sétimo mês de gestação e, assim, depois de cinco tentativas infrutíferas Deus teve piedade e não deixou outra gravidez vingar.

Poliana agora estava com seus cinquenta e cinco anos, mas ainda carregava a formosura que sempre lhe pertencera. Alguns sucos na fronte, poucos fios grisalhos na farta cabeleira. Elias já passava dos setenta e, ao contrário do que esperava quando mais jovem, atingiu a idade com plena saúde e sem as dores características de pessoas da mesma faixa etária.

Era a data limite, no entanto. Dia de liquidar a dívida. Fugir ou se esconder não era uma opção, pois, se ele não acertasse as contas a pena recairia sobre Poliana.

Ao se lembrar da esposa uma dor pungente afligiu-lhe peito. Por que havia contraído aquela dívida? Por que havia marcado aquele maldito encontro?

“Ah! Se eu conseguisse negociar a dívida…” Suspirou.

Já se aproximava do lugar aprazado e agora a serração havia diminuído, permitindo uma visão mais ampla do ambiente. Elias deixou a estrada principal, passou por entre a cerca de arame farpado e seguiu por uma trilha estreita entre a vegetação espessa, da altura de sua cintura. O capim braquiária umedecido pelo sereno noturno molhava as pernas da calça e incomodava os movimentos. Mas, daquele ponto já conseguia enxergar a entrada gruta.

Esticou a mão que segurava a lanterna na direção da caverna e suspirou fundo. O que ele viu lhe deixou sobremodo atordoado. Uma mulher surgiu na entrada da gruta e fez um sinal com a mão. Não era uma mulher qualquer. Era Poliana. Mas, como poderia ser a esposa, se ele a havia deixado em casa dormindo? Milhares de pensamentos pulularam em sua mente, conturbando ainda mais seu raciocínio.

Elias tentou se esconder sob a aba do chapéu de palha e ensaiou dar um passo atrás. Nesse momento, um uivo de cachorro em noite de lua cheia atraiu sua atenção outra vez, fazendo-o se lembrar o porquê de ter ido  até o local. A imagem de mulher havia desaparecido. Em seu lugar, um homem alto, magro e elegantemente trajado fazia um sinal com a mão, convidando-o a se aproximar. Atrás do homem que o atraía, um apêndice à semelhança do rabo de leopardo balançava de um lado para o outro, devagar, de forma arrebatadora. Elias só teve tempo de pensar no sorriso de Poliana pela última vez. Sorriso meigo, reconfortante, cheio de amor.

LEIA TAMBÉM

Até hoje me pergunto se é pecado ser feliz? Fechei a cortina e voltei para o meu quarto...

“Um homem só pode fazer o pacto com o capeta uma única vez na vida.”