Quando Railton chegou em casa com um cachorrinho entre os braços, a mulher resmungou, fez uma expressão de desaprovação e virou as costas. O cãozinho era uma fofura, pequenino, pouco mais de um palmo de comprimento e cabia em uma caixa de sapato, mas Joana não gostava de animais em casa, sobretudo cachorro. Como o casal ainda não tinha filhos, Joana costumava deixar a casa brilhando, com tudo arrumado no lugar, e um animal acabaria bagunçando a casa e, no caso de um cachorro, deixaria a casa repleta de pelo e ainda fedendo. Mas a empolgação de Railton acabou por contagiar a mulher. Não que ela tenha passado a gostar de animais em casa, mas por amor ao marido, aceitou o animal. Deram-lhe o nome de Rex. Um nome bastante comum para cão de pequeno porte, mas não para um rottweiler.
O animal ainda era filhote, brincalhão, atrapalhado e logo conquistou a simpatia de Joana. Mas a casa nunca mais foi a mesma. Chinelos apareciam estragados, almofadas destroçadas, plantas quebradas e terra dos vasos espalhada pelo quintal. Railton procurava arrumar tudo o mais rápido possível. Já havia tido trabalho para fazer a mulher aceitar o animal, e sabia que qualquer deslize poderia despertar a aversão da mulher contra o cãozinho novamente. Com o tempo Rex se tornou a mascote da casa e Joana passou a tratá-lo como se filho fosse. Dava banho, colocava roupinha, comprava petiscos e até comprou uma cama para o animal dormir no canto da sala. A alegria do casal estava completa. Ambos se amavam e o cãozinho veio trazer mais amor à casa.
Depois de um ano de idade Rex ficou mais comportado. Um cachorro com um ano de idade equivale a quinze anos de um humano, e o cão já havia abandonado as brincadeiras de filhote. Agora agia como um jovem, o que significa menos artes pela casa. Mas com quase cinquenta centímetros, o cão não queria mais ficar deitado no chão, e sempre que os donos não estavam por perto, ele pulava sobre o sofá. Havia pelos por todo o sofá e nas almofadas, e Joana começou a perder a paciência com o animal. Mas Rex era esperto e quando via a mulher, corria para o quintal e se escondia sob o carro ou atrás do pé de manga.
Foi nessa época que Joana começou a sentir enjoos. Até o cheiro do cachorro, antes ignorado por ela, agora a incomodava. Bastava chegar perto do cachorro, que o estômago embrulhava. O motivo? Estava grávida. A barriga mal fazia volume na roupa, mas ela sabia que os próximos meses não seriam fáceis. A vida de uma grávida no verão do sertão pernambucano é um período complicado. Além dos quase quarenta graus na sombra, o marido não costumava ajudar com os afazeres doméstico. Conforme a gravidez avançava, Joana sentia cada vez mais moleza no corpo. Já não conseguia manter a casa em ordem e as brigas por causa dos pelos do cachorro aumentaram. Por conta disso decidiram que Rex passaria a dormir na varanda. Às vezes o cão dava uma escapada e corria para cima do sofá, mas sempre que ouvia a aproximação da dona, corria para o quintal e se escondia em algum canto.
Decorrido os nove meses Joana deu luz à um garoto. Menino forte e saudável e ocupava boa parte do tempo de mãe. Rex agora já estava com quase dois anos e passou por um período longo de depressão ao perceber que os donos já não lhe davam a atenção de outrora. Antes do nascimento da criança, o cão era tratado como se filho fosse, mas agora o casal tinha uma criança, um filho de verdade, e Rex passou a ser apenas um cachorro para proteger o quintal. Mas o tempo cura tudo, inclusive a tristeza do pobre cachorro. Com a persistência e humildade que apenas um cachorro consegue ter, Rex conseguiu conquistar a afeição dos donos outra vez.
Já haviam se passado três anos desde que Joana dera à luz o filho e Rex já era um “senhor” de meia-idade. O vigor de outrora havia ficado para trás e passava a maior parte do tempo descansando sob a sombra do pé de manga. Só se levantava quando ouvia um barulho no portão. Se fosse um de seus donos, o cachorro pulava e latia sem parar, demonstrando uma alegria exagerada, mas se fosse um desconhecido, o cachorro permanecia calado, de longe, só observando e quando a pessoa menos esperava, ele atacava. Se tornou um excelente cão de guarda e durante esses quatro anos, não poucas vezes fez uma ou outra visita borrar as calças.
E foi confiando na proteção oferecida pelo cachorro que determinada noite o casal resolveu ir jantar fora enquanto o filho dormia do quarto. O restaurante ficava a menos de três quadras da casa e como pretendiam voltar logo, Joana colocou o filho para dormir e fechou a porta do quarto. Inajá não era uma cidade violenta e como Railton era policial, dificilmente alguém se atreveria invadir a casa.
Havia se passado pouco mais de duas horas quando eles voltaram. Railton colocou a chave na fechadura do portão, deu duas voltas no sentido anti-horário e empurrou o portão. A dobradiça do portão estava sem lubrificação e fez um rangido alto, mas Rex não veio ao seu encontro, pulando e latindo como de costume. Foi aí que percebeu que algo estava errado. Ele assobiou a fim de chamar a atenção do animal, mas nada de latido.
Railton franziu a testa e olhou na direção da mulher. Ou havia acontecido algo com o cão, ou o bicho tinha aprontado algo e se escondeu. Por via das dúvidas, o homem mandou a esposa seguir atrás dele, tirou o revólver da cintura e caminhou e devagarinho na direção de entrada. A porta da sala estava aberta, mas não havia ninguém em seu campo de visão. Deu mais alguns passos e chegou na varanda. Rex estava em posição de guarda no meio da sala. Segurava na boca um pedaço de tecido branco, manchado de sangue. Railton deixou escapulir um grito abafado e quando Joana viu que além do tecido na boca do animal havia sangue pelo chão seguindo na direção do quarto do filho, ela colocou as mãos na cabeça e começou a gritar: “Meu filho! Meu filho! O que você fez com meu filho?”
Railton cobriu a boca com a mão e ficou atônito por uns instantes, calado, apenas olhando para o cachorro. Quatro anos atrás, a contragosto da mulher, ele havia levado o cachorro para dentro de casa. Naquela noite, mesmo Joana tendo insistido para não deixar a criança sozinha em casa com o cão, ele havia garantido que seria seguro. Agora, assustado pelo que via e atordoado pelos gritos da mulher, Railton apontou a arma na direção do cachorro e disparou. Seis tiros no total. Bastou o primeiro tiro para tirar a vida do animal, mas Railton estava transtornado e só parou após esvaziar o tambor do revólver. Rex caiu desfalecido no meio da sala, com o tecido ensanguentado preso entre os dentes e um olhar inocente, sem entender o motivo da revolta dos donos.
Nesse instante, um som vindo do quarto do filho chamou a atenção do casal. Parecia um choro, distante, abafado. Joana correu para o quarto, e Railton seguiu-a, atordoado. A criança estava em pé dentro do berço, chorando com uma cobertinha em frente aos olhos. No chão, em meio a uma poça de sangue, jazia o corpo de um homem magro, com o pescoço dilacerado.