POLARIZAÇÃO E HAVAIANAS

As Havaianas estavam no canto do quarto, debaixo da cama, com a tira esquerda torcida para dentro, como sempre acontece quando a gente chuta o calçado sem olhar. Eram azuis, um azul indeciso, nem céu, nem piscina. O número um pouco maior que o meu pé, presente de amigo secreto da firma, duas semanas antes de o mundo desandar por causa de um comercial.

Naquela noite, eu tinha chegado em casa com a cabeça cheia de frases alheias. No elevador, o porteiro comentou que a empresa tinha perdido milhões em valor de mercado. Falou isso com a mesma entonação com que anuncia chuva forte ou aumento do condomínio. Eu balancei a cabeça, fiz um ruído neutro com a boca e segui para o apartamento. No corredor, alguém discutia política pelo telefone, a voz atravessando a porta como gordura quente atravessa papel. Não deu para saber que lado era, só que estava irritado.

No quarto, tirei o sapato, o direito primeiro, depois o esquerdo, e senti o alívio conhecido. As Havaianas ficaram ali, me esperando. Eu ainda não tinha usado, porque presente novo dá uma certa culpa de uso, como se o primeiro desgaste fosse uma traição ao gesto de quem deu.

O amigo secreto tinha sido antes da polêmica, antes do comercial, antes de a sandália virar argumento. Lembro do papelzinho dobrado três vezes, do riso constrangido ao revelar o nome, do colega dizendo que escolheu aquilo porque era democrático, todo mundo usa. Na época, pareceu só uma frase vazia de confraternização de fim de ano, agora, a palavra democrático tinha adquirido peso de dicionário arremessado.

Sentei na cama e fiquei olhando para as Havaianas, pensei em calçá-las para ir até a cozinha beber água, mas desisti. A sola ainda rígida denunciaria o ineditismo, além disso, havia um certo receio infantil de que, ao pisar nelas, eu estivesse tomando partido de alguma coisa que não compreendi direito.

Abri o Instagram, e logo os posts sobre o incidente se atropelavam, o comercial era analisado quadro a quadro, como se fosse filme estrangeiro em festival. Gente dizendo que era só propaganda, gente dizendo que era o fim da civilização. Economistas de ocasião comemoravam ou lamentavam a queda das ações, dependendo do humor e do alinhamento ideológico do dia. Um conhecido escreveu que nunca mais pisaria numa Havaianas, outro respondeu que ia comprar dez pares para compensar.

Fechei o aplicativo. O quarto ficou em silêncio, interrompido só pelo barulho distante de um ônibus passando na avenida. Peguei uma das sandálias e virei de cabeça para baixo, a borracha ainda cheirava a loja, a estoque. Passei o dedo pelo relevo do logo, como se ali houvesse alguma resposta escondida.

Lembrei do verão passado, de quando Havaianas eram apenas Havaianas. Chão quente, cerveja morna, areia grudando no pé, ninguém perguntava em quem você votou antes de reparar na cor da sandália. Agora, até o azul parecia suspeito.

No grupo da família, um irmão mandou áudio longo, dizendo que empresas não deveriam se meter em política, que isso era coisa de militante sem o que fazer. Minha sobrinha respondeu com figurinha irônica. Minha irmã tentou mudar de assunto perguntando quem ia trazer a sobremesa no domingo, mas ninguém respondeu.

Levantei para pegar água e fui descalço mesmo. O piso frio da cozinha me devolveu ao corpo. Enchi o copo até a borda, derramei um pouco, limpei com a manga da camisa. Enquanto bebia, pensei no prejuízo da empresa, nos acionistas, nos gráficos descendentes, pensei também que nenhuma dessas coisas tinha relação direta com a borracha azul no meu quarto. 

Voltei e sentei de novo. As Havaianas continuavam ali, imóveis, alheias à histeria geral. Imaginei meu amigo secreto comprando o presente, andando pelo shopping, escolhendo a cor mais neutra possível, sem intenção política, só pressa e orçamento limitado. A sandália não sabia disso, e as pessoas também pareciam não saber mais.

Alguém tocou a campainha do apartamento ao lado, e ouvi vozes baixas no corredor, um cumprimento rápido, o elevador sendo chamado. A vida seguia, apesar do comercial, apesar da bolsa de valores, apesar das timelines em chamas.

Peguei as duas Havaianas e alinhei lado a lado, como se fossem pés esperando dono. Pensei em levá-las para a sala, deixá-las à vista, assumir o risco simbólico, em escondê-las mais fundo, atrás da mala, até a poeira política baixar. Nenhuma das opções parecia resolver coisa alguma.

No celular, uma nova mensagem. Um colega perguntava, meio de brincadeira, se eu ainda usaria as sandálias depois de tudo, mas demorei para responder. Olhei para meus pés descalços, para a marca branca deixada pelo sapato social, e escrevi que ainda não tinha usado, que eram novas. Enviei.

Deitei na cama sem apagar a luz. As Havaianas ficaram no chão, testemunhas silenciosas. Antes de fechar os olhos, empurrei uma delas com o pé. A tira voltou a se dobrar para dentro.