Os devotos de Krishna dançavam freneticamente ao som das karatalas e mridangas quando desci no Uber em frente ao MASP. Homens de cabeça raspada, vestindo roupas cor de açafrão e mulheres envoltas em sáris coloridos. Eu estava atrasado para o encontro com o grupo de estudo da faculdade, mas a música dos devotos de Krishna prendeu a minha atenção. Talvez pelo som cantoria repetitiva, talvez pelo som arrebatador dos instrumentos indianos. Mas, muito provavelmente, foi a bela devota que dançava com um instrumento nas mãos. Essa, sim, me fez ignorar o cheiro da poluição da avenida Paulista ou ou barulho do carros. Cabelo cor de cobre, pele clara com algumas sardas nas bochechas e um par de olhos verdes.
As letras das músicas eram variações sobre o mesmo tema, numa infindável repetição do mantra hare-krishna, mudando apenas a melodia. As danças variavam de acordo com o ritmo, numa espécie de passos ensaiados, quase hipnotizante.
Havia mais de dez devotos festejando no momento, fora os simpatizantes que entraram na roda, mas meus olhos pararam na bela ruiva com karatala entre os dedos.
Instintivamente, enfiei a mão no bolso e apanhei o celular. Cacete! Eu estava tão entretido com os devotos de Krishna, que acabei me esquecendo do encontro com o pessoal da faculdade.
O celular estava no modo silencioso e a vibração do aparelho era tão fraca que eu não percebi as notificações do Whatsapp. Respondi três ou quatro mensagens, mas ninguém visualizou. Provavelmente já haviam chegado ao fórum e entrado na sala de audiência. Para mim não restava outra alternativa a não ser voltar para casa.
Para um estudante de direito, chegar ao fórum sozinho é uma situação constrangedora. É necessário uma verdadeira via-sacra para conseguir entrar na sala de audiência. Normalmente as partes envolvidas não sabem diferenciar um advogado de um estudante e apenas olham com curiosidade. E apenas eles nos olham com respeito. Ou com receio. Juízes e advogados das partes olham com uma certa reserva, mas como eles também já passaram pela mesma situação, não fazem objeção com a presença do estudante.
Como eu não iria mais a nenhuma audiência naquele dia, me detive por mais algum instante e permaneci observando os devotos. Na verdade, pouco me importava os devotos ou a dança. O que chamava minha atenção era a garota com cabelos cor de cobre. Se movia de modo gracioso, elegante e até sensual, eu diria. Aposto que debaixo daquele sári florido havia um corpo sensual rebolando para mim.
Peguei o metrô de volta para casa e me distraí com outras pessoas que encontrei pelo caminho. Um casal tatuado no vagão trocava carícias como dois adolescentes. Um judeu de kipá na cabeça sentado ao lado de um homem com feições de oriente médio, provavelmente muçulmano. Uma mulher jovem tentando dominar os três filhos pequenos que corriam por entre os demais passageiros. Assim, segui meu caminho de volta para casa e meus pensamentos foram se dispersando, me fazendo esquecer da devota ruiva de Krishna.
Na semana seguinte marcamos nova visita ao fórum. Prometi aos meus amigos que não iria me atrasar e combinamos de nos encontrar no vão livre do MASP. No dia e horário combinados lá estava eu descendo do Uber. E lá estavam os devotos de Krishna dançando novamente. Antes de encontrar com meus amigos, diminuí os passos e desviei o olhar na direção dos devotos. Mas cadê a garota ruiva? Procurei entre os demais devotos e não a encontrei. O grupo parecia ser o mesmo da semana passada, mas a garota não estava entre eles. Sei que não teria a possibilidade de rolar algo entre eu e a garota, mas o fato de não encontrá-la novamente me causou uma sensação de frustração, como se algo que a mim pertencesse tivesse me abandonado. Nesse instante senti quando alguém se aproximou e passou o braço pelos meus ombros.
“Tá querendo virar hare krishna, cara?”
Era um dos amigos da faculdade e indagou com um sozinho irônico. Neguei com a cabeça e sorri desconfiado.
O pessoal do grupo já estava esperando a gente e assim que nos encontramos, seguimos para o fórum sem mais delongas.
Ao chegar no fórum, a primeira situação constrangedora para um estudante de direito é ter de abrir a mochila e mostrar o que há dentro dela para os seguranças na entrada do fórum. É claro que é necessário revistar as bolsas de quem entra no fórum, mas as mochilas de um estudante de direito deveriam ser preservadas, afinal de contas, somos os futuros guardiões da justiça deste país. Infelizmente nem todos pensam dessa forma. Na sequência, menos constrangedor, no entanto, entediante, era necessário procurar a recepção e solicitar as atas das audiências. Audiência na vara da família é melhor esquecer. A maioria corre em segredo de justiça e, por conta disso, tais audiências não são liberadas para outras partes, salvo os envolvidos. Claro que um estudante filho de juiz ou promotor tem passe livre, mas um filho de uma dentista com um contador não teria esse privilégio. Para minha sorte havia uma audiência de conciliação. O demandante era um senhor atropelado por um ônibus e a empresa havia proposto um acordo. Caso simples, bastante corriqueiro, mas serviria como atividade complementar e tudo o que eu queria era participar e me livrar de mais uma audiência.
Entrei pisando nas pontas do pés para não fazer barulho e me dirigi para a poltrona no canto da sala. O juiz permaneceu alheio à minha presença, mas as partes envolvidas olharam de forma discreta, aparentemente sem entender o que eu estava fazendo sentada no canto mais afastado. Retirei as folhas de relatório da mochila e fiquei atento à conversa, a fim de fazer o relatório da audiência. Nesse instante a porta se abriu e uma mulher entrou na sala. Permaneci de cabeça baixa, olhando apenas com o canto dos olhos. Trajava uma saia até a altura do joelho e um sapato preto de salto fino, elegante. Quando fechou a porta um cheiro agradável de Mademoiselle da Chanel preencheu o ambiente.
Percebi se tratar da promotora. Levantei um pouco mais a cabeça a fim de vê-la melhor. Trajava um terninho elegante, um cordão grosso de ouro no pescoço e o cabelo ruivo penteado em coque, discreto. A pele era clara, as bochechas rosadas e boca carnuda, com batom levemente avermelhado.
Ela lançou um olhar na minha direção e depois fez algumas intervenções junto ao juiz. Era uma mulher com postura séria e falava com propriedade. Nunca aspirei a magistratura e nem tenho pretensão de advogar, mas se há algo na seara do direito que eu aspiro é a promotoria. Fiquei admirado com a forma como ela falava, demonstrando conhecimento e autoridade e fiquei me imaginando em seu lugar. A promotoria não é pra qualquer um, pois demanda dedicação nos estudos e conhecimentos, e seu eu quisesse chegar onde ela estava, eu precisaria ralar muito antes. De qualquer forma era meu objetivo e não custava sonhar um pouco.
A audiência correu de forma relativamente tranquila e menos de trinta minutos depois já estava encerrada. O juiz deixou a mesa e entrou em uma sala contígua, e quando as partes deixaram a sala, me dirigi ao escrivão a fim obter o carimbo atestando minha participação na audiência. A promotora Nágila permanecia sentada à mesa, agora menos séria e com um sorriso amistoso no rosto. Quando o escrivão saiu com a folha do relatório para o juiz assinar, ela interveio:
“Estudante de direito, hein. Pretende advogar?” Perguntou ela amistosa.
“Pra ser sincero aspiro à promotoria. Sei que não é fácil, mas é o que mais aprecio no direito.”
Ela balançou a cabeça. O sorriso amistoso permanecia no canto da boca.
“Vai exigir dedicação e disciplina, mas se quiser eu posso te ajudar.”
Foi isso mesmo que ouvi? Ela estava me oferecendo ajuda? Pensei ter ouvido errado e perguntei o que ela havia dito. E ela confirmou. Senti meu estômago tremendo naquele instante. Entre os estudantes de direito costumamos nos referir aos juízes como “deuses” e aos promotores como “semi-deuses”. Mas aquela promotora era diferente. Antes que eu conseguisse agradecer, ela prosseguiu:
“E você, continua parando no MASP para ver os devotos de Krishna?”
Como ela sabia disso? Foi nesse instante que me lembrei de onde ela me conhecia. A promotora eloquente e amigável era a mesma devota de Krishna que eu havia visto na semana anterior. Senti meu rosto pegar fogo nesse instante e gaguejei algumas palavras desconexas sem conseguir responder. Meu constrangimento era evidente, e ela percebeu. Possivelmente também percebeu que meu constrangimento era por conta de um preconceito descabido em relação à sua religião.
Mas além de simpática, a garota era discreta e não teceu comentários sobre a situação.
“Aparece lá quando puder. Nem sempre eu consigo estar presente, mas sempre que posso estou entre os demais devotos.”
Concordei com a cabeça, sem dizer palavras. E, mesmo se eu quisesse, não conseguiria responder naquele instante. Minha ignorância havia sido maior que meu bom-senso e meu constrangimento deu um nó na minha garganta, me impedindo de responder qualquer coisa. Nos despedimos e, com as pernas trêmulas, me sentei novamente na poltrona, tentando me recompor enquanto esperava o escrivão retornar com a folha do relatório assinada pelo juiz.