PRETO VELHO

Minha mãe estava em seu quarto, numa extremidade da casa. Há quase um ano vivendo sobre a cama, passava o dia vendo documentários e, com frequência, chamando alguém para reclamar que estava morrendo de fome, mesmo tendo sido alimentada há poucos minutos.

Ela já tinha idade avançada e desde quando quebrou o fêmur não voltou a andar. Não quis, na verdade. Não aceitou fazer fisioterapia e dizia querer ficar quieta em seu canto. E assim ficou. Além do problema de locomoção causado pela quebra do fêmur, o alzheimer lhe apagava algumas memórias, às vezes memórias recentes, às vezes memórias distantes, não seguia um padrão, como tudo na vida, sem padrões e sem razão de ser.

“Estou morrendo de fome e não tem um fêla da puta pra me trazer comida!”, reclamava ela menos de meia hora após se alimentar.

As constantes alterações de humor causadas pelos lapsos de memória, traziam xingamentos e elogios em curto espaço de tempo.

“Este meu filho é um anjo!” dizia após receber a alimentação. 

Sei que não sou anjo nem demônio, sou apenas um cara normal, levando uma vida medíocre como tantas outras pessoas, com os mesmos problemas que na maioria das vezes não chegam ao conhecimentos dos demais, como em uma novela mexicana nas quais as pessoas comem o pão que o diabo amassou, mas se esforçam para manter a aparência feliz perante a sociedade.

Às vezes, quando ela estava de bom humor, contava histórias de quando era moça, dos bailes que ia e dos namoros rápidos escondidos dos pais. Foi em um desses namoros que conheceu o meu pai, um encontro arranjado pelos próprios irmãos e, mesmo a contragosto e sob pressão familiar, o casamento não tardou a ocorrer.

Após o rompimento do fêmur da minha mãe, a nossa vida virou de cabeça para baixo. Nem todos os irmãos podiam ou se demonstravam dispostos a ajudar, então cabiam aos mais próximos se encarregar dos cuidados. 

Esse incidente me fez ficar um pouco mais religioso. Não sei se religioso seria o termo correto, porque, de fato, não passei a frequentar a umbanda por amor a qualquer ser espiritual ou algo parecido, mas apenas por interesse em resolver os problemas que se acumularam nos últimos tempos. Mas quem não age de maneira semelhante em tempos de crise? As pessoas que conheço, em sua grande maioria, quando procuraram se aproximar de alguma religião o fizeram na esperança de receber auxílio espiritual. Ou foi por conta do desemprego, ou por sofrer com alguma moléstia, ou devido a problemas de relacionamento. E comigo não era diferente.

Naquele sábado, tinha gira no terreiro da mãe Angelina, como ocorria todos os primeiros e terceiros sábados do mês. No início da minha jornada religiosa, deixar de ir ao barzinho para ir no terreiro não me parecia agradável, mas era necessário. Dizem que não é a gente que escolhe a umbanda, mas a umbanda que escolhe a gente. Não sei se é verdade. A umbanda não possui um manual que sirva de fé e prática para todos os umbandistas e cada médium afirma uma coisa, então, acredito que nem eles sabem ao certo.

Dei um beijo na testa da minha mãe, fui até o quarto da minha irmã dar um tchau e saí com destino ao terreiro sob a garoa fria que caía. 

Mãe Angelina era uma negra na casa dos 60 anos, sempre solícita e com um sorriso amistoso no canto da boca. Os cabelos crespos e grisalhos acomodados atrás das orelhas lhe davam uma aparência da Tia Anastácia, por isso, era impossível olhar para ela sem imaginar o cheiro do café quente esfumaçante e o bolo de fubá cremoso.

No centro da mãe Angelina não há atabaque e agogô, e os pontos são acompanhados apenas pelas batidas de mãos dos presentes. O Sino da Igrejinha é uma exceção, pois as palmas são batidas apenas durante o “belém, blem, blom.” Três palmas seguidas. “Belém, blem, blom.”

Não sei quanto tempo a gira durou naquele dia. Sei que costuma durar pra cacete, mas ali, envolto pelo clima da cerimônia, pela cantoria dos pontos e pela fumaça do defumador que recendia um odor de madeira queimada, a gente acaba perdendo a noção do tempo. No final, me consultei com o Preto Velho, que pitava o cachimbo fedorento e trazia a mensagem com a voz calma e palavreado simples.

“Vossuncê precisa ter calma, fio. Nada acontece sem a aprovação do nosso supremo senhor, mas o fio precisa confiar”, ele deu uma baforada do cachimbo. “Sem fé nada se alcança!” Prosseguiu.

Enquanto ele falava, eu fiquei imaginando como seria possível manter a calma se eu havia procurado o terreiro justamente pra me livrar dos problemas que caíram de forma inesperada com uma tempestade de verão.

“Se vossuncê  passa por essa provação, é porque tem que passar e não adianta tentar escapulir.”

Voltei para casa com aquelas palavras martelando a minha cabeça. Como manter a fé ante a enxurrada de infortúnios? Que senhor supremo é esse que se mantém passivo enquanto pessoas boas gemem de dor sobre uma cama? 

De qualquer forma, quando abri o portão de casa eu me sentia menos tenso, acredito que foi pela forma amigável como o Preto Velho me aconselhou, não necessariamente pelas palavras que ele disse.

A tranquilidade durou pouco, no entanto. Minhas duas irmãs casadas estavam na cozinha, ambas com uma expressão apreensiva no rosto. Pensei que algo tivesse acontecido com a minha mãe, mas dessa vez era minha irmã solteira. Há cerca de quatro meses ela não se levantava mais da cama devido ao câncer que se manifestou no cérebro e se espalhou pelo restante do corpo. Ela estava chorando de dor, gemendo, sem conseguir verbalizar onde doía. Percebi que o corpo todo doía, uma dor pungente que causava desespero em todos nós.

Fiquei me perguntando o porquê daquele sofrimento. Ela sempre foi uma pessoa boa e não merecia sofrer de tal forma. Tantos filhos da puta vivendo impunes e a minha irmã sofrendo sobre a cama, sem, ao menos, conseguir expressar através de palavras o sofrimento que prenunciava a morte iminente. Por que Deus se mantinha sadicamente passivo?

As palavras do Preto Velho voltaram a martelar os meus pensamentos. Me sentei na poltrona ao lado da cama da minha irmã e comecei a acariciar a sua cabeça já desprovida de cabelo.

“Se vossuncê passa por determinada provação, é porque tem que passar e não adianta tentar escapulir.” 

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