VIZINHOS INCONVENIENTES

Há quem diga que o amor ao próximo é o maior mandamento. Concordo, mas desde que o próximo more a pelo menos uns cinquenta metros de distância, porque amor eu até tento, o problema é quando o próximo tem nome, sobrenome, cachorro histérico e uma caixa de som mais potente que a minha paciência.

Começo este relato confessando uma verdade: eu sempre fui sociável, mas meus vizinhos, não todos, óbvio, me fizeram mudar. Atualmente, o que eu quero é viver em paz, de preferência num prédio onde cada morador seja mudo, surdo e tenha a delicadeza de flutuar em vez de andar. Mas a vida, como sabemos, é uma grande pegadinha. E a minha veio embalada num condomínio chamado Vila Verdejante, nome que soa como ironia patrocinada pelo destino.

O primeiro sinal de que eu estava prestes a mergulhar no inferno veio no segundo dia após a mudança. Eram sete da manhã de um sábado. Eu ainda sonhava que estava no antigo apartamento, onde o barulho mais grave era o ronco do meu próprio arrependimento, quando fui acordado por uma espécie de apocalipse sonoro. Era um funk, desses que te fazem sentir o coração no esôfago e o respeito próprio fugindo pela janela.

Desci pela escada pra ter uma melhor noção de onde o som estava vindo. Encontrei o vizinho do X…2, um sujeito sorridente e sem camisa, regando samambaias na porta da entrada e sambando ao mesmo tempo. “Tá curtindo aí, mano?”, gritou ele, segurando o cigarro entre os dentes. Eu, ainda meio sonâmbulo, murmurei algo entre “bom dia” e “vai se foder”. Ele respondeu que fazia questão de “animar o prédio”, e que o som era “pra todos”. Mas todos quem? Porque ninguém havia pedido.

Na semana seguinte, conheci a vizinha do X…3, a senhora da faxina espiritual. Uma mulher que acredita que cada corredor é um portal energético e, por isso, acende incensos de patchouli em horários aleatórios. Às vezes, no meio da madrugada, o cheiro invade meu apartamento e eu acordo achando que fui cremado por acidente. Já tentei conversar com ela, mas ela me disse que o aroma “purifica as vibrações”. Pois bem, agora minhas vibrações são uma mistura de raiva e patchouli.

Como você pode perceber, nosso prédio é democrático no desconforto.

Na noite passada, fui acordado à 1:30 da madrugada com o estrondo de algo caindo e uma sequência de gemidos intermináveis. No início, pensei que fosse violência doméstica e cheguei a levantar pra reportar à portaria a agressão doméstica, mas, depois de prestar atenção de forma mais atenta, percebi que era outro tipo de violência, daquelas que a gente só vê no XVideos. O pior que isso ocorre com certa frequência. Às vezes, quando o tom aumenta demais, seguro até a respiração só pra ouvir se eles vão terminar ou recomeçar. E, devo confessar, já fiquei tentado a interfonar e perguntar se eu podia participar da festa, mas depois me lembrei de que ela é uma mistura de funkeira da periferia com personagem de Almodóvar, aí desisti da ideia.

E a vizinha do X…4, ah, essa é um caso à parte. Ela tem um andar peculiar, não caminha, galopa. De manhã, parece que está ensaiando sapateado com botas de ferro; à noite, treina levantamento de móveis. Sinceramente, não dá pra entender como alguém que mora em um cubículo de 52 metros quadrados precisa mover os móveis o dia inteiro. E à noite toda!

O mais fascinante é o senso de comunidade que se cria entre vizinhos inconvenientes. Outro dia, encontrei o do funk, a do incenso e a dos gemidos conversando no hall. Um fenômeno sociológico: o caos se une em matrimônio. Ao invés de cumprimentar, tirei o celular do bolso e fingi estar conversando com alguém.

A síndica, coitada, tenta manter a paz. É uma mulher loira, de expressão resignada, que aprendeu a sorrir com os lábios, nunca com os olhos. Envia circulares semanais implorando para respeitarmos os horários de silêncio, e o curioso é que, quanto mais ela implora, mais barulhentos ficam. Há um prazer obscuro em ser o motivo do desespero alheio, e meus vizinhos parecem especialistas nessa arte.

Já tentei revidar. Certa noite, inspirado por um acesso de desespero e vinho barato, pedi pra Alexa tocar Mozart no último volume. Pensei: “Vamos ver se a sinfonia número 40 é capaz de espantar os demônios do X…2”. No minuto seguinte, recebi uma mensagem no grupo do prédio: “se for pra fazer barulho, bota algo que preste, tipo Zé Neto e Cristiano”. Ou seja, fracassei em música e em vingança.

No grupo de WhatsApp, aliás, é onde a humanidade vai pra morrer. Lá descobri que a senhora do incenso também cria gatos. Muitos. E que eles “passeiam pelo corredor porque merecem liberdade espiritual”. Descobri que o casal do X…1 vende cosméticos veganos e acha que todo mundo deveria usar shampoo de babosa. E descobri que a vizinha do X…4, a maratonista do inferno, também aprende saxofone.

Mas nem tudo é tragédia. Há uma certa poesia involuntária na convivência forçada. Às vezes, enquanto ouço o som de uma furadeira às dez da noite, penso que talvez aquele ruído simbolize algo maior: uma tentativa humana de preencher o silêncio. Talvez cada barulho seja, no fundo, um grito por atenção. O problema é que a atenção que eu quero dar é um processo judicial.

Também há um lado pedagógico nisso tudo. Conviver com vizinhos inconvenientes é um curso intensivo de tolerância, paciência e sarcasmo. Aprendi a dormir com o barulho, a filosofar com o cheiro de incenso e a transformar cada tragédia doméstica em matéria literária. Aliás, os gemidos da vizinha vão gerar um ótimo roteiro pra um vídeo de sacanagem. Pode esperar!

Às vezes, me pego imaginando que, no fundo, eles também reclamam de mim. Talvez digam: “O Claudio é um sujeito esquisito, nunca vai às festas, vive com cara de quem está escrevendo um livro triste.” E, nesse ponto, teriam razão, porque talvez eu seja o mais inconveniente de todos: o vizinho que observa, julga, ironiza e depois transforma cada um deles em personagem.

Há algo de cruel, mas também de doce, em transformar a irritação em literatura. Escrever é o meu jeito de ajustar contas sem precisar descer no condomínio. É o meu modo civilizado de vingar o barulho, a fumaça e os gemidos. Enquanto eles brigam, queimam incenso e fazem sexo como animais no cio, eu escrevo, e é uma vingança silenciosa, quase elegante.

De vez em quando, penso em me mudar. Sonho com uma casinha isolada, um quintal, passarinhos de verdade, nenhum grupo de WhatsApp. Mas logo lembro que o ser humano é um animal gregário e que, se eu fugisse para o mato, o destino me mandaria um vizinho que toca violão às seis da manhã, ou um ermitão que bate panela para espantar mau-olhado. A vida não deixa ninguém em paz por muito tempo.

Então fico. Abro a porta da sacada, acendo uma vela (ironicamente, de patchouli) e observo o mundo continuar sua sinfonia desafinada. O vizinho do funk aumenta o volume, a senhora do incenso varre energias imaginárias e o casal do X…2 começa mais um sexo selvagem, isso quando não está arrastando os móveis às 23h.

E eu, no meio de tudo isso, rio. Um riso cansado, cúmplice, meio resignado, afinal de contas, há gente que incomoda e gente que escreve sobre quem incomoda. Se o paraíso é o silêncio, então o inferno é um condomínio com nome que faz alusão à natureza.

No fim das contas, aprendi a lição: amar o próximo é fácil. Difícil é amar o vizinho.