Meu avô sempre dizia que a gente só morre depois de terminar o almoço. Talvez por isso ele tenha durado tanto: comia devagar, mastigava cada garfada como quem lê um versículo da Torá. Para ele, ainda faltava um prato. Já meu tio, apressado, terminou a missão antes do café. Foi embora jovem. “Morreu antes da hora”, disseram. Mas que hora é essa?
Esses mistérios embaralharam minha cabeça. Não sou uma pessoa religiosa, mas em momentos assim, uma certa espiritualidade, ainda que meio revoltada, insiste em aparecer. Fui consultar a Torá, achando que Deus me devia uma explicação mais detalhada e encontrei a velha máxima: “Há tempo de nascer e tempo de morrer.” Bonito, poético até, mas não ajuda muito quando procuramos respostas. Ainda assim, foi justamente dessa frustração que nasceu a vontade de entender melhor o que há por trás do tal “tempo certo” de cada coisa.
A tradição judaica diz que cada alma tem uma missão, o tikun. Uns vêm para plantar árvores, outros para apenas regar uma roseira. Tem até quem só apareça para recolher folhas secas, e quando acaba, volta para “casa”. Segundo a Cabalá, antes de descer à Terra, a alma marca um encontro com o Criador para acertar os detalhes da jornada: que bagagem levar, quando o passaporte será carimbado e qual a duração do visto. Há quem resolva tudo em dez anos. Outros levam um século e ainda deixam tarefas pela metade, por isso, precisam fazer uma nova viagem, talvez mais curta, para completar a obra inacabada.
Às vezes penso que eu, com meus atrasos e procrastinações, devo ser do tipo que reencarna apenas para tentar concluir as tarefas que deixou pendentes na vida passada. Mas, ao que parece, são tantas incompletas que talvez eu prefira mesmo deixá-las assim por enquanto. Imagino Deus reclamando do meu histórico: “Cacete! (Será que Ele usa esse tipo de expressão?) Esse aí tem tantas pendências que nem o departamento espiritual de arquivos conseguiu organizar tudo.” Vai saber.
Mas o tempo é mesmo relativo. Conheci gente que, em poucos anos de vida, fez mais barulho no universo do que a torcida do Corinthians no final de campeonato. Lembro do velho Avraham, amigo da sinagoga, que costumava dizer que viver não é contar os dias, mas fazer com que cada dia conte.
Quando alguém parte cedo demais para o meu gosto, fico revoltado, bravejo com o Eterno, perco um pouco mais da minha fé. A cabeça pede justiça cronológica, e o coração mastiga a saudade, só que, segundo o Zôhar, obra cabalística que nossos rabinos leem como quem decifra mapas de algum filme do Indiana Jones, algumas almas só passam para acender uma vela. Um ato, um gesto, uma crônica inédita (quem sabe?). Depois da missão cumprida, voltam para o Alto, provavelmente sem fila.
Aceitar é, sem dúvida, o mais difícil. A gente bate o pé, reza, cita trechos de livros religiosos e chora no travesseiro. Fico imaginando que, se o profeta Moisés, mesmo depois de subir o Sinai, não compreendeu plenamente os desígnios do Eterno, que explicação melhor eu, mero cronista aspirante a filósofo, poderia esperar? Resta-me, então, ser sincero: não entendo. E talvez o que nos reste seja simplesmente aceitar, mesmo sem entender.
Baal Shem Tov, fundador do judaísmo chassídico, ensinava que tudo acontece para o bem. O sábio ensinava que não se trata de negar a dor, mas despertar para a percepção de que existe uma geometria espiritual nas perdas, uma lógica sutil que escapa à compreensão da matéria na maior parte do tempo. É aceitar que, por trás das aparências, uma ordem divina articula cada acontecimento, mesmo quando nosso entendimento terreno não alcança essa verdade mais profunda.
Eu, às vezes, só consigo transformar saudade em histórias, não para diminuir a dor, mas porque, no fundo, as histórias me ajudam a desmontar a tristeza da perda. Mas não há fórmulas. Cada um encontra o seu próprio caminho, sua própria maneira de lidar com a partida de uma pessoa querida, de acordo com suas crenças, suas próprias reflexões, ou no acolhimento de um abraço.
No final das contas, a morte não tem hora marcada, ela tem, no máximo, hora cumprida, pois, se cada um veio para um papel específico, morrer não é ser interrompido, é concluir o capítulo. Amar alguém é querer que continue sempre, mas amar, dentro da tradição judaica, é também saber que tudo retorna para sua origem, afinal, viver é caminhar “para o princípio”, e partir é chegar lá. Não antes, não depois, mas na hora certa, na hora da alma.
Os sábios afirmam que existem almas capazes de correr “maratonas de sentido” em poucos instantes. Será que aqueles que “partem antes do tempo” não seriam velocistas espirituais, que cruzaram a linha de chegada antes mesmo do último apito soar? Eu, que ainda tropeço no ritmo dos dias, talvez precise mais de tempo do que de sentido.
E assim seguimos. Na próxima vez que alguém partir, talvez eu resista à tentação de pedir explicação aos céus, em vez disso, tentarei lembrar que o tempo é arte divina e que, para cada alma, há uma jornada e um adeus que pertencem só a ela.
No fim, a hora do embarque rumo ao retorno só se revela no bilhete de quem já viveu a viagem inteira. Ou, como dizia meu avô, talvez seja mesmo só depois do almoço.