O PROTOCOLO MASCULINO QUEBRADO

Em uma rua comum de São Paulo vive João. Aos 42 anos, ele é como tantos outros: casado, pai, executivo em uma firma que mastiga números e cospe relatórios sem vida. Não importa se você o imagina solteiro, gay, hétero ou qualquer outra variação: todos carregam aquela mesma sombra rastejante atrás de si, uma presença que não se vê, mas que se sente, como um sussurro no escuro que nunca cala. É uma sombra que cresce devagar, alimentada pelo silêncio, e ele a sente pressionando seu peito toda manhã. E toda noite.

João vai até o sofá, tira o celular do bolso e rola a tela para baixo. A lista de contatos é infinita. Tem o Anderson da contabilidade, o Fábio da faculdade (que ele não vê há dez anos), o grupo do futebol de quinta-feira e uma infinidade de “Zés” cujos sobrenomes são nomes de empresas. Há centenas de conexões ali, mas, sentado no sofá numa terça-feira à noite, com um nó na garganta que ele não sabe desatar, João percebe uma aritmética cruel: ele tem mais de quinhentos contatos, mas não tem um amigo.

Ele está cercado de amigos de bar, amigos de churrasco e até amigos de viagens. É um homem conectado e, se ele postar uma foto de uma taça de vinho agora, terá cinquenta curtidas em dez minutos. Se ele tropeçar na rua, três grupos de WhatsApp saberão antes de ele chegar ao chão. No entanto, sentado no sofá de sua sala, ouvindo o zumbido da geladeira, que parece conversar com o zumbido dentro da sua cabeça, João sente a verdade gelada da aritmética adulta.

Não se trata de problemas matrimoniais. A esposa está no quarto, dormindo o sono dos justos. Não se trata de dívidas nem de filhos rebeldes. É algo pior, algo sem contorno, sem cheiro e sem nome fácil. É a sensação de que o ar ficou rarefeito. É a “Coisa”.

A “Coisa” é essa visita indesejada que chega sem avisar. Alguns chamam de depressão, outros de ansiedade, os poetas chamam de melancolia e os médicos têm códigos de CID para ela. Para João, é como se ele estivesse operando no piloto automático: sorrindo nas reuniões, rindo das piadas no almoço, mas, por dentro, ouve-se apenas um chiado de televisão fora do ar, uma estática cinza, um medo súbito e irracional de que tudo vai desmoronar, misturado com a certeza exaustiva de que nada faz sentido.

E é aí que entra a tragédia da agenda telefônica.

Para quem um homem liga quando não está com problemas práticos, mas com problemas na alma? Existe um protocolo social para chamar um amigo e dizer: “Cara, não tô bem”? Não, não existe. O manual de instruções da masculinidade, aquele que nos é passado implicitamente no pátio da escola e nos vestiários, é claro: homem resolve, homem conserta. Se o carro quebra, você chama o mecânico. Se o cano estoura, chama o encanador. Se a mente quebra… bem, você toma uma cerveja, faz uma piada cínica e espera passar. Ou infarta aos cinquenta. O que vier primeiro.

João para no nome de Paulo.

Paulo é um cara “normal”. Trabalham no mesmo setor, jogam tênis ocasionalmente, está sempre rindo, conta as melhores histórias sobre as férias em Ubatuba, posta fotos sorridentes no Instagram segurando taças de vinho.

Mas João trava. Ele queria dizer algo como: “Cara, não tô bem, tá foda continuar. Tem dez minutos?”. Mas os dedos congelam e ele não digita.

Por que é tão difícil? Mulheres parecem ter um código secreto, uma permissão ancestral para ligar uma para a outra e dizer “amiga, preciso desabafar” sem isso soar como um pedido de relacionamento ou um sinal de fraqueza, mas, para os homens, existe um campo minado. Como você convida outro homem para sair, só vocês dois, sem um motivo “másculo” no meio? Se tiver jogo na TV, tudo bem; se for para ajudar numa mudança, ótimo. Mas chamar o Paulo para tomar alguma coisa e falar da vida? Isso soa… meio coisa de veado.

Na cabeça do João, o tribunal hétero top já está em sessão. “Vai parecer que sou carente”, ele pensa. “Vai parecer que estou dando em cima dele”, o preconceito sussurra. “Ou pior: ele vai pensar que sou um perdedor.”

É estranho, mas a amizade masculina padrão é feita de “lados”. Nós sentamos lado a lado para ver o jogo, lado a lado para jogar videogame, lado a lado no balcão do bar olhando para o espelho ou para a TV, mas raramente sentamos “frente a frente”. Olhar no olho é perigoso, olhar no olho exige despir a armadura.

O fato é que a solidão masculina não é física: é um isolamento diplomático. Somos treinados para sermos ilhas autossuficientes, aprendemos a competir, a prover, a resolver; nunca aprendemos a cultivar. A amizade platônica, sólida, aquela em que você pode chorar, admitir que está com medo ou se sentindo emocionalmente mal, se tornou uma arte perdida.

João sente o peito apertar, é a taquicardia noturna, velha conhecida. A sensação de que ele é uma fraude, de que todos ao redor são adultos funcionais e ele é apenas uma criança assustada usando terno e gravata. A solidão não é estar sozinho numa ilha deserta; a solidão absoluta é estar numa sala lotada, espremido entre corpos e taças e, ainda assim, se sentir só.

Ele precisa falar. Não quer conselho, não quer dinheiro, não quer que ninguém “resolva” nada. Ele só precisa ser ouvido, precisa que alguém saiba que ele está afundando, para que, se ele afundar de vez, alguém saiba onde procurar.

João digita. Apaga. Digita de novo.

“Paulo, tá ocupado?”
Muito formal.

“E aí. Topa uma breja?”
Muito festivo. Ele não quer festa.

“Cara, preciso conversar. A cabeça não tá boa.”
Arriscado, exposto demais; soa como um pedido de socorro, o que, de fato, é.

Ele respira fundo. A alternativa é continuar engolindo o grito até virar úlcera ou estatística. Finalmente, aperta “enviar” antes que a coragem evapore.

O minuto seguinte parece durar uma hora. O “visto por último” muda. “Digitando…”.

Ele se arrepende, quer jogar o celular pela janela. “Vou parecer ridículo? Paulo vai responder ‘Kkkk bebeu, cara?’”

A tela brilha.

“E aí, blz? Aconteceu alguma coisa?”

João responde: “Não. E sim. Só… não tô legal. De verdade. Ansiedade, uma angústia, sei lá.”

Silêncio. O ponto de não retorno foi cruzado. Agora Paulo sabe que o colega engraçado do escritório tem rachaduras.

A resposta vem: “Lanchonete do Zé. 20 minutos. Tô precisando sair de casa também.”

Na lanchonete, o ruído é ensurdecedor. Risadas, copos batendo, a TV ligada num volume alto; o cenário perfeito para o isolamento. Eles se cumprimentam com aquele aperto de mão padrão, pedem a bebida e cumprem o ritual de falar do trânsito, do calor que tem feito, do preço do café.

Eles circulam o assunto como dois lutadores de sumô se estudando antes do choque, até que o silêncio entre eles cai na mesa.

João olha para o copo suado.

“Cara… valeu por ter vindo. Eu tava…” João busca a palavra. “Eu tava me sentindo meio zoado, um aperto no peito… Sabe quando parece que você tá gritando por socorro e ninguém te escuta?”

Ele espera a piada, espera o “deixa disso”, mas Paulo não ri, Paulo não pega o celular, apenas suspira e, de repente, seus ombros caem, revelando um indivíduo vulnerável.

“Sei como é… tô tomando remédio pra dormir há mais de um ano, e ninguém sabe, nem minha mulher. Às vezes eu paro o carro na garagem e fico uns dez minutos chorando antes de subir, só pra conseguir sorrir pra minha filha.”

A revelação do amigo foi um soco, não no estômago, mas na máscara. De repente, ele olha para o Paulo e não vê mais o cara das fotos de Ubatuba. Vê um espelho.

“Sério, cara? Eu… eu achei que fosse só eu.”

“Nada! A gente é que é treinado pra fingir que tá tudo bem, mesmo quando o nosso emocional tá em ruínas.”

A conversa que se segue não resolve a depressão de João, nem cura a insônia de Paulo. Não existem milagres em um copo de cerveja, mas algo fundamental muda. A solidão causada pela angústia, aquela entidade sólida e impenetrável, ganha uma rachadura.

Eles falam sobre o medo da morte, sobre a sensação de insuficiência, sobre os ataques de pânico no banheiro da firma. Coisas que guardavam dentro do peito agora estão ali, na mesa, compartilhadas. O peso não desaparece, mas agora é carregado por quatro ombros, não dois.

Eles se despedem uma hora depois. Ao voltar para casa, João olha para a lista de contatos novamente: seiscentos e quarenta e dois nomes. A maioria continua sendo apenas ruído digital, mas, ao olhar para o nome “Paulo”, João percebe que ele não está mais sozinho no escuro. Existe outro náufrago na ilha vizinha acendendo uma fogueira. E, às vezes, ver a fumaça do outro lado é tudo o que a gente precisa para aguentar até o amanhecer.

E você? Pare por um segundo e seja honesto. Esqueça a esposa, a namorada ou a mãe, e olhe para sua lista de contatos agora. Se o mundo desabasse sobre a sua cabeça hoje à noite, para qual nome você ligaria apenas para dizer: “Cara, não tô legal e não sei o que fazer?”

Se você demorou para encontrar um nome, ou se não encontrou nenhum, você não está sozinho na sua solidão, mas resta a pergunta: você vai continuar esperando que o telefone toque, ou vai ter a coragem de quebrar esse silêncio?

Talvez o seu “Paulo” esteja apenas esperando você dar o primeiro passo e, acredite, ele vai te receber, porque, no fundo, somos apenas primatas buscando o calor do bando: temos uma necessidade vital de sermos acolhidos, mas sentimos um prazer ainda maior, quase instintivo, em ser o refúgio de outro. A grande ironia é que, ao contrário dos macacos, temos o dom da palavra, a gente só esqueceu como usá-la para dizer “cara, preciso de ajuda”.