PROSEANDO

CONTOS, CRÔNICAS, ETC.

CRÍTICAS LITERÁRIAS DE UM UBER

Entrei no carro e já notei. Ali, encaixado no canguru do banco do passageiro, estava uma capa que eu conhecia tão bem quanto o rosto da minha mãe: azul-escuro com letras brancas, uma estrela de David ocupando metade da capa. “Por Dentro do Judaísmo”, dizia o título. Meu livro.

Sentei no banco tentando conter um sorriso. Não é todo dia que um escritor, principalmente um escritor brasileiro de nicho, encontra sua obra na natureza, livre e solta, vivendo sua própria vida longe das prateleiras da Saraiva e dos algoritmos da Amazon. É como topar com um filho distante que você não sabia que tinha ido parar justamente ali, naquele Uber às três da tarde, numa terça-feira comum em São Paulo.

“Bom dia”, cumprimentei, ajeitando o cinto de segurança.

“Bom dia! Tudo bem?” 

O motorista tinha uns cinquenta e poucos anos, barba grisalha, pouco cabelo na cabeça. A voz era amigável, daquelas que te fazem relaxar imediatamente, sinal de quem passa o dia inteiro conversando com desconhecidos.

Respirei fundo. Tinha que perguntar. Seria impossível ficar calado.

“Desculpa a curiosidade, mas esse livro aí no canguru… você tá lendo?”

Ele olhou pelo retrovisor, os olhos brilhando com um entusiasmo genuíno.

“Cara, terminei de ler faz uns três dias. Livro bacana, hein! Recomendo demais.”

Meu coração acelerou. Um leitor! Um leitor real, espontâneo, que não me conhecia, que não era parente, que não tinha recebido o livro de presente com aquele sorriso amarelo de quem vai deixar na estante para sempre.

“É mesmo? E o que você achou?” perguntei, tentando soar casual, como se estivesse apenas fazendo conversa de corrida de Uber.

Ele não precisou de muito estímulo. As palavras saíram em cascata.

“Olha, eu tava procurando livros sobre o judaísmo e encontrei esse no site de uma livraria judaica, meio que por acaso, mas me interessei logo de cara depois de ler o sumário… Meu avô era judeu, minha mãe contava que ele veio da Europa antes da guerra. Cresci sem saber quase nada sobre judaísmo, mas sempre tive uma curiosidade, uma coisa que puxava por dentro.”

Ele fez uma pausa para dar seta, ultrapassar um ônibus.

“Aí descobri essa história de bnei anussim. Não sei se você sabe, mas eles são os descendentes dos judeus forçados à conversão ao cristianismo. Cara, pra mim foi uma revelação! Comecei a estudar, a procurar livros, e encontrei esse. Foi perfeito para mim, porque explica tudo de um jeito que quem está de fora consegue entender.”

Eu estava sorrindo feito bobo no banco de trás, olhando pela janela para disfarçar. Ele continuou:

“O autor consegue explicar os conceitos, as festas, a história, sem presumir que você já sabe tudo, aprendi demais. Agora entendo muito melhor minha própria história, sabe?”

“Show, hein!”, consegui dizer, a voz meio embargada. “E você… gostou da forma como está escrito?”

“Com certeza. É bem acessível.” Ele fez uma pausa. “Mas, olha, vou ser sincero com você…”

Lá vem o bendito “mas”, pensei.

“Achei a escrita um pouco simplista demais em alguns momentos. O autor poderia ter se aprofundado mais em certas questões…”

Ele ajustou o retrovisor, olhando para mim através do espelho, completamente alheio ao fato de que estava analisando o livro na frente do próprio autor.

“Ele usa muito o nome de Deus no texto. Escreve ‘Deus’ direto, sem muito cuidado. Isso me incomodou um pouco. Para quem está escrevendo sobre judaísmo, ele deveria saber que muitos judeus evitam escrever ou pronunciar o nome de Deus diretamente. Deveria ter usado ‘Hashem’, pelo menos em algumas partes, porque soa mais respeitoso, mais adequado à tradição.”

Eu estava com os lábios apertados, tentando não rir. Ou chorar. Ou os dois.

“Essa é uma crítica interessante”, falei, me controlando.

“Pois é. Percebi que o livro foi escrito pra um público geral, não só pra judeus, mas mesmo assim… Se a pessoa se propõe a escrever sobre determinada religião, tem que respeitar as sensibilidades dela, concorda? Não adianta explicar tudo certinho e depois descuidar de um detalhe tão importante quanto esse.”

Ele estava falando com a autoridade de quem tinha acabado de ler não um, mas provavelmente quinze livros sobre judaísmo. E, convenhamos, ele não estava totalmente errado. Aquela crítica sobre o uso do nome de Deus era algo que eu tinha debatido com o editor. Optamos pela acessibilidade, pela aproximação com o leitor secular. Mas era uma escolha, e toda escolha tem seu preço.

“Você parece saber muito sobre judaísmo”, comentei.

“Cara, depois que descobri essa história toda, virei meio obcecado. Leio tudo que posso, assisto vídeos de rabinos no Youtube, participo de grupos no Facebook. Inclusive, estou pensando em procurar uma sinagoga pra participar de alguns eventos… tem uma reformista aqui perto que aceita pessoas na minha situação.”

O trânsito estava mais leve agora e a gente já estava chegando perto do meu destino. Eu sabia que tinha poucos minutos para revelar a verdade, e estava genuinamente em dúvida se deveria ou não. Parte de mim queria continuar naquele anonimato, absorvendo sua opinião pura e não filtrada. Mas outra parte, a parte vaidosa, a parte que tinha passado mais de dois anos escrevendo aquele livro, queria se revelar.

“Que história interessante”, falei, me inclinando um pouco para frente. “E você recomendaria o livro, apesar das críticas?”

“Com certeza! As críticas são pequenas perto do valor que o livro tem. Pra você ter uma ideia, já indiquei para três amigos que também têm curiosidade sobre o tema. É aquele tipo de livro que você termina e fica pensando, sabe? Me fez querer aprender mais.”

Pronto. Estava decidido. Eu tinha que contar.

“Cara, você não imagina o quanto fico feliz em ouvir isso”, falei, a voz agora com um tom diferente. “Porque eu sou o autor do livro.”

Silêncio total. Até o barulho do trânsito parecia ter dado trégua.

O carro quase deu um solavanco. Ele olhou pelo retrovisor, os olhos arregalados, a boca meio aberta.

“Você… você o quê?”

“Eu que escrevi o ‘Por Dentro do Judaísmo’, sou o autor.”

Ele deu uma risada nervosa, passou a mão pelo rosto.

“Tá falando sério? Cara, eu…” Ele estava visivelmente constrangido. “Desculpa as críticas, eu não sabia que…”

“Relaxa!”, interrompi, rindo. “Foi excelente! Você não tem ideia de como é raro um autor receber um feedback tão honesto. Geralmente as pessoas só dizem que gostaram, com medo de ofender, mas você me deu uma crítica real, fundamentada. Isso vale ouro.”

Ele ainda estava processando, balançando a cabeça em descrença.

“Que situação bizarra. Eu nunca imaginei… Quer dizer, qual a probabilidade?”

“Pois é. O universo tem seu senso de humor.”

O carro estava parando na frente do prédio. Ele desligou o veículo e se virou completamente para trás, agora me encarando de frente.

“Olha, independente das críticas, eu quis dizer tudo aquilo que falei. O livro mudou minha vida. De verdade. Me ajudou a entender quem eu sou, de onde vim e me deu ferramentas para explorar minha própria identidade.”

Senti um nó na garganta.

“Obrigado. Sério. Esse era o meu objetivo ao escrevê-lo.”

Ele olhou pro livro, depois para mim.

“Você poderia autografar?”

“Claro!”

Ele me entregou o livro com uma reverência quase cômica. Peguei uma caneta da minha mochila e escrevi na primeira página: “Para o melhor crítico literário que já encontrei. Que sua jornada pelos caminhos do judaísmo seja iluminada. Com admiração.”

Quando devolvi o livro, ele o segurou como se fosse uma relíquia.

“Vou guardar para sempre. E vou contar essa história para todo mundo.”

Desci do carro, ainda sorrindo. Antes de fechar a porta, ele se despediu:

Todá rabá! Shalom!”

“Eu que agradeço. Shalom!”, respondi, acenando.

Fiquei ali parado na calçada por um momento, vendo o carro se afastar no trânsito. Pensei em todas as vezes que duvidei se o livro faria diferença, se chegaria nas mãos certas, se tocaria alguém de verdade. E ali estava a resposta, na forma mais improvável possível: num Uber, numa tarde qualquer, através das palavras sinceras de um homem redescobrindo suas raízes.

Às vezes, o universo nos lembra que as palavras viajam mais longe do que imaginamos. E que os encontros mais inesperados são os que deixam as marcas mais profundas.

Subi pro apartamento ainda pensando na conversa. Aquela crítica sobre Hashem ficaria na minha cabeça por semanas.

Quem sabe, na segunda edição, eu não reconsiderasse? Afinal, o melhor feedback vem sempre dos leitores.

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