DENTRO DO SAPATO

Você já reparou que ninguém, absolutamente ninguém, tem um dedo mindinho do pé bonito? É quase uma lei da natureza. O pobre coitado parece ter sobrado na hora da criação, um equívoco anatômico que o corpo resolveu tolerar por piedade. Pequeno, encolhido, torto, esmagado a vida inteira dentro de sapatos apertados. Alguns nascem virados para dentro, outros tentam se endireitar como se tivessem vergonha da própria forma. Há aqueles que se escondem quase atrás do vizinho, discretos, esperando que ninguém os perceba.

Podemos afirmar, sem medo de errar, que o dedo mindinho do pé é o elo perdido da beleza. Não há pedicure que o salve. Pode receber o esmalte mais caro, a base fortalecedora importada, um banho de cosméticos franceses; ele continuará parecendo um pequeno sobrevivente de guerra. E o mais curioso é como tentamos fazer de conta que ele não existe, é o nosso segredo coletivo: uma sociedade unida pela vergonha do próprio dedinho.

Mas há algo de comovente nessa dissimulação, não há? Porque a verdade é que até as pessoas mais belas, as mais cuidadas, as que brilham nas capas de revista e nas telas do celular, também escondem um dedo mindinho horroroso. Aquele ser perfeito que desfila sorrindo, com o rosto simetricamente iluminado, também guarda um pequeno miserável encurvado. O mindinho do pé é a grande prova de que, por baixo de qualquer perfeição, lateja um pedacinho de feiura impossível de domar.

Vivemos, afinal, em tempos de filtros, poses e ângulos estudados, todos querem parecer limpos, fitness, zen, sábios e equilibrados. É o novo padrão de santidade digital: ninguém soa, ninguém teme, ninguém sofre. Só que, como o mindinho do pé, a verdade sempre escapa por baixo da meia.

Sempre me lembro de uma amiga que, certa noite, depois de horas dançando num casamento, tirou o salto em público. Bastou o alívio de um segundo para revelar o segredo que ninguém esperava: o mindinho sendo violentamente esmagado, roxo e dobrado sobre si mesmo, clamando por misericórdia. Consegue perceber? As aparências servem enquanto sustentam o espetáculo; depois, basta um sapato removido para o teatro desabar.

E é nessa hora que a metáfora começa a se insinuar, como quem tira o sapato da alma, porque o problema nunca foi ter o dedo feio (afinal, todos temos), o problema é fingir que ele não existe. Passamos a vida tentando esconder o que é torto dentro de nós, como se a feiura fosse um acidente e não parte do projeto. Pintamos a superfície, limpamos o rótulo, disfarçamos o cheiro, ensaiamos sorrisos. Postamos frases inspiradoras enquanto respiramos mágoas, praticamos compaixão teatral, perdoamos de fachada.

As redes sociais são, talvez, a maior lavanderia espiritual das últimas décadas: um imenso desfile de pés em calçados novos, onde todo mundo exibe apenas os quatro dedos bem posicionados, o mindinho, claro, fica de fora do enquadramento.

Há algo violentamente humano nessa hipocrisia. Queremos tanto parecer bons que acabamos escondendo a verdadeira face. A bondade, quando mascarada, apodrece como pé em sapato fechado, e o odor moral é inconfundível. Talvez o dedo mindinho represente justamente isso: a lembrança de que não existe perfeição sem deformidade. O corpo nos educa na humildade, ele grita, debaixo do salto: “Aceita tua feiura, criatura.” Mas a gente resiste, movido pela fantasia de parecer mais nobre, mais evoluído, mais digno, e nesse esforço, vamos deformando a própria alma.

O problema é que o salto da aparência cansa. Há quem viva exausto de sustentar uma imagem bonita, equilibrada, espiritualizada: são os perfeitos de Instagram, iluminados até o momento em que o wi-fi cai. São os moralistas que pregam amor universal, mas não toleram o vizinho, são os espiritualizados que falam de energia, mas humilham o garçom. O cinismo é o sapato que aperta, mas dá status.

O mindinho do pé é uma grande metáfora da humanidade. Pequenino, meio torto, vive colado aos outros, raramente tem espaço próprio. 

No fundo, quem se conhece aprende a rir do próprio mindinho. Ri do que é feio, torto, incômodo, ri da pressa de se mostrar bonito, ri da própria necessidade de aplauso. Porque quando o riso chega, vem a ternura, e nela mora o perdão: o de aceitar que tudo o que somos, inclusive o que escondemos, nos sustenta.

Caminhando com nosso pequeno monstro anatômico, escondido debaixo de meias e desculpas. Ele vai junto, fiel, lembrando-nos que não há sapato capaz de apagar a verdade do corpo, nem salto que disfarce por muito tempo o formato da alma. O mindinho do pé é a consciência que se revela em silêncio, aquele padrão moral que te cutuca quando a mentira aperta demais.

Talvez seja essa a sabedoria que ainda nos falta: a de aceitar nossas pequenas feiuras sem precisar escondê-las atrás de filtros, hashtags e sapatos de verniz. Porque, convenhamos, feio mesmo não é o mindinho do pé, feio é esconder a falta de caráter, feio é fingir amizade por interesses, feio é ser ingrato a quem lhe estendeu a mão.