PURIM, SHABAT E ARDÊNCIA ANAL

Purim sempre foi minha festa preferida do calendário judaico. Gosto do clima festivo, das fantasias, das brincadeiras na sinagoga, de dançar sem culpa de vexame. E do mandamento de beber até esquecer o próprio nome, essa é a melhor parte. O problema é que eu levo essas recomendações a sério demais.

Tudo começou inocentemente. A sinagoga estava em clima de carnaval versão kasher: purpurina discreta, perucas coloridas, máscaras e gente com taças de vinho na mão fingindo que ainda entendia o que o rabino dizia. Um grupo desafinava Hava Nagila no canto e eu, já no terceiro copo de vinho, decidi que era hora de socializar. Foi quando vi ela.

Não sei se foi a iluminação das velas, a bebida ou o simples milagre de Purim, mas juro que vi um anjo. Vestido curto, sorriso afiado. Me aproximei com a confiança de um galanteador que nunca deveria ter confiança.

Ela se apresentou como Márcia, e eu, tentando parecer espirituoso, disse algo como “E eu sou Ahashverosh. Quer ser minha Ester?”. Ela riu, ou tossiu, não tenho certeza. Conversamos sobre amenidades religiosas, pelo menos acho que conversamos. O que lembro é que cada vez que ela falava, era como se um ser angelical tocasse meu coração.

O resto foi o tipo de decisão que em qualquer outra data seria considerada inapropriada, mas em Purim, depois de várias taças de vinho, nada mais parece inapropriado. Não sei quem convidou quem, mas minutos depois a gente estava dentro de um carro com o GPS apontando para o Motel Paradise.

Lembro do neon rosa na entrada, um cheiro forte de desinfetante mentolado no corredor, dela rindo enquanto abria a porta do quarto. Depois, fragmentos: vinho derramando, um espelho no teto que me fez questionar escolhas de vida, uma música brega no rádio. E então… nada. Um buraco negro digno de Moisés esquecendo o caminho para a Terra Prometida.

Quando acordei, a luz do sol atravessava a persiana. Uma garrafa de vinho caída no chão. Nenhuma Márcia.

Olhei em volta com aquele pânico clássico de ressaca moral e o medo de ter sido roubado, mas minha roupa estava dobrada na cadeira, o Bulova no criado-mudo, carteira intacta. Tudo no lugar, menos a dignidade e uma ardência suspeita, uma dorzinha traiçoeira na região traseira que preferi não investigar naquele momento.

Passei o domingo tentando reconstruir os acontecimentos. Abri o celular várias vezes: nada. Nem mensagem, nem emoji perdido no WhatsApp, era como se Márcia nunca tivesse existido.

Mas o verdadeiro problema me aguardava no Shabat seguinte.

Entro na sinagoga fingindo normalidade, kipá na cabeça, cumprimentos, bênçãos, o barulho do talit abrindo. Tudo ia bem até eu parar perto do grupo que sempre discute as fofocas da comunidade sob o disfarce de “comentários sobre a parashá”.

Foi então que ouvi:

“Você soube da Márcia? Pois é, parece que nem era Márcia… era Marcelo, um travesti! Ele enviou uma mensagem por engano pro grupo da sinagoga e depois apagou, mas o rabino já tinha visualizado.”

O mundo ficou em câmera lenta. Senti o suor escorrendo pelas costas. A memória do motel, aquele desconforto de domingo, tudo se conectando numa velocidade alucinante.

Um dos homens me cutucou, animado: “E aí, viu a confusão que deu com aquela novata? Aquela Márcia enganou meio mundo… que situação, hein?”

Eu ri. Um riso que deve ter soado normal, mas por dentro era puro terror existencial.

Durante a leitura do Sidur, cada vez que o rabino dizia “Adonai”, meu cérebro só conseguia perguntar: “será pimenta ou alergia?”

Cheguei em casa e tomei o banho mais longo da minha vida. Me olhei no espelho tentando processar: eu, homem maduro, espiritualizado, sensato, tinha caído na primeira piscadela com vinho no sangue. Minha vaidade de galanteador me deixou ridiculamente vulnerável.

Os dias seguintes foram tortura. Na padaria, achava que todos tinham um sorrisinho de canto, no grupo da sinagoga, cada mensagem sobre “reflexões morais” parecia dirigida a mim, até o rabino postou algo sobre “as aparências enganosas que nos afastam da verdade divina”. Quase respondi com um emoji de fogo, mas me contive.

Na semana seguinte, Baruch Hashem, outra fofoca tomou conta: o filho do chazan estava namorando uma moça da umbanda. As atenções migraram e eu pude respirar com certo alívio.

No ano seguinte, quando chegou Purim de novo, hesitei antes de ir à festa. Mas fui. E no meio do salão iluminado, alguém me ofereceu vinho.

“Pega aí, cara, é Purim, vamos encher a cara!”

Aceitei, mas bebi apenas uma taça. Foi o primeiro Purim que passei sóbrio.

E enquanto observava os outros cada vez mais embriagados, me lembrei da Márcia. Ou Marcelo. E da ardência. Prefiro pensar que foi alergia ao sabão do motel ou daqueles desinfectantes industriais baratos que eles usam pra higienizar as roupas de cama. Porque o Marcelo, sinceramente, parecia uma boa pessoa. Educado, gentil e, de certo modo, até espiritualizado.

Não faz o menor sentido ele ter feito uma brincadeira tosca e passado pimenta na minha bunda. Com certeza foi alergia.

____________________

Nota: esta crônica foi originalmente escrita para um site de humor judaico. Para os leitores não familiarizados com os termos, segue um pequeno glossário:

Baruch Hashem – expressão usada para expressar gratidão ou alívio
Chazan – cantor litúrgico nas sinagogas
Kasher – conforme os preceitos religiosos
Kipá – pequeno chapéu circular que os homens judeus usam na cabeça
Parashá – porção semanal da Torá
Purim – festa judaica que celebra a salvação do povo judeu na Pérsia antiga
Shabat – dia sagrado de descanso semanal no judaísmo
Sidur – livro de orações
Talit – Xale de oração que os homens judeus usam durante as rezas

LEIA TAMBÉM