PROSEANDO

CONTOS, CRÔNICAS, ETC.

ENTRE CRÔNICAS E SEXO

Passei a noite na avenida Industrial, entre as putas e os travestis que fazem ponto no local. Em época de inflação alta, quando o quilo do café mais barato custa mais de R$ 60, confesso que fiquei tentado em também colocar meu corpo à venda. Talvez conseguisse vender… por quilo.

E quem me fez parar na Industrial? Meus leitores. Um em particular. Dentre todos os que cobram por contos urbanos e crônicas novas, o Bruno é o mais insistente. Mas essa é uma longa história.

Na verdade, não tão longa assim: o Bruno é aquele tipo de leitor que parece ser pago por editora rival só pra atormentar. Manda mensagem de madrugada perguntando quando sai texto novo. Me marca em postagens de autores russos como quem diz: “Olha, dá pra escrever bem mesmo sem internet.” E ultimamente, tem reclamado da minha falta de criatividade como se fosse um caso de saúde pública.

“Escuta aqui! A última crônica foi sobre a porra de um gato preto olhando pro nada. Que que houve com você, cacete?” — ralhou outro dia.

O que houve? Fiquei sem ideia, simples assim. Um limbo criativo, um cansaço mental que nem café de sessenta reais consegue despertar. E, num desses apagões literários, saí andando à noite sem rumo, carregando apenas um bloco de anotações, uma caneta BIC mordida e a desesperança de um escritor prestes a reciclar crônicas antigas como se fossem novidades.

Foi aí que acabei na avenida Industrial, um lugar onde, dizem, a carne é fraca, mas o movimento é forte.

Sentei num canteiro lateral, fingindo anotar algo. O lugar é mais iluminado que avenida de bairro deveria ser, talvez por motivos de segurança. Carros passavam devagar, janelas semiabertas, olhos ágeis e linguagens silenciosas em pleno funcionamento. Quando pareciam interessados, encostavam. E foi nessa que o primeiro me abordou:

“E aí, quanto você cobra?” perguntou um rapaz de voz grossa e perfume barato, dirigindo um Corolla com rodas cromadas.

“Ãhn? Eu? Nada… só tô escrevendo.” respondi, tentando manter o ar de cronista em missão.

Ele me olhou desconfiado, como se eu fosse um novo tipo de profissional: o escritor de ponto. E logo completou:

“Ah, entendi… é passivo ou ativo?”

Engasguei. Minha mente criativa, embora letárgica, logo criou a imagem do grandalhão ajoelhado na minha frente querendo fazer boquete ou, segurando minha cabeça pra fazer nele. Misericórdia!

“Sou observador.” respondi, procurando segurar a risada, como se isso explicasse alguma coisa.

“Hmmm… voyeur, gostei.” e foi embora, rindo.

A vergonha evaporou quando os outros carros começaram a repetir a abordagem, cada um com suas preferências. Um me ofereceu R$ 200 por “companhia discreta”, outro perguntou se eu fazia “giro completo”. Teve até uma caminhonete importada, com vidros escurecidos e um moleque filhinho de papai (pra não dizer filho da puta!) que disparou:

“E aí, tiozinho de programa! Seu pau ainda sobe?”

Não sabia se ria, se xingava ou se atualizava meu currículo no LinkedIn com esse novo título. Se eu estivesse mesmo à venda, seria um produto gourmet, vendido por quilo e com etiqueta de “experiência inclusa”, ou seria um produto vencido?

Aos poucos, percebi que o público era variado, um verdadeiro reflexo da fauna urbana paulistana: homens engravatados em SUVs com bancos de couro, mulheres em carros de aplicativo que diminuíam a marcha para perguntar se havia “meninas novas” por ali, e senhores de paletó e gravata colorida, como as dos pastores da Assembleia de Deus.

Foi aí que o inesperado aconteceu.

Enquanto anotava tudo no meu bloco de notas, que, àquela altura, mais parecia uma ata de assembleia da luxúria urbana, alguém se aproximou e sentou ao meu lado. Usava uma blusa de paetês vermelha, uma peruca loira meio torta, e um perfume doce demais pra noite abafada. Sua voz era grave, firme, e com um toque de riso.

“Tá escrevendo um romance pornô, meu bem?”

Olhei e sorri. Não era deboche. Era simpatia. Era… Rogéria, ou quase.

“Tô tentando escrever qualquer coisa. Tô sem ideia.” confessei, derrotado.

Ela acendeu um cigarro de cravo e soltou a fumaça como quem assopra fantasmas.

“Ideia não falta aqui. Só falta coragem de olhar de verdade.” disse, apontando com o queixo na direção dos veículos que passavam.

O nome dela era Cléo, mas no passado já foi Nágila, Verônica, e uma vez até se apresentou como Glória Menezes num bingo beneficente. Tinha mais de sessenta, era a mais antiga da avenida, e falava como quem viu de tudo: milicos disfarçados, vereadores acanhados, padre de pau pequeno que só queria conversar, e rabino de pau circuncidado querendo fazer mitzvá de meteção e, claro, poetas frustrados que vieram ali “buscar material”.

Conversamos por mais de uma hora.

Ela me contou que a avenida Industrial já teve seus dias de glória decadente. Que, hoje, o risco é maior, e o lucro menor. Que tem mais clientes pedindo desconto do que oferecendo gorjeta. Que a rua ensina a não julgar, e que cada farol que encosta tem uma história, ou uma vergonha, que daria pra encher bibliotecas.

Eu, de minha parte, contei sobre o Bruno, sobre os leitores ansiosos, sobre a angústia de escrever num país onde até o papel tá caro. E sobre a dúvida constante de estar ficando velho demais para tentar ser genial.

Ela riu com gosto, exibindo a ausência dos dentes de trás.

“Ah, meu amor, genial é quem sobrevive! O resto é vaidade de autor que nunca levou cantada de caminhoneiro.”

Anotei a frase. Com aspas.

Naquela noite, não escrevi um conto, escrevi uma amizade. Cléo, com seu jeito de drag debochada, me deu mais que personagens, me deu contexto, me deu escuta, me deu a percepção de que até a falta de ideia é, em si, uma história.

Quando o Bruno me mandou mensagem no dia seguinte, “Saiu crônica nova, caralho?”, respondi com um áudio:

“Opa! Saiu, sim, e com perfume de cigarro barato, sombra azul e sabedoria de calçada.”

A verdade é que às vezes é preciso sair de si, deixar o orgulho na gaveta e encarar a rua como sala de aula. A avenida Industrial não me deu só uma ideia, me deu uma personagem, um espelho, uma epifania.

E quanto ao corpo à venda, talvez alguém queira comprar por quilo, aí faria uma boa grana. Mas, por enquanto, continuo vendendo palavras… se bem que, como disse a Cléo entre uma baforada de cigarro, “dinheiro na mão, calcinha no chão”.

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