PROSEANDO

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CRÔNICA DAS QUINZE HORAS PERSEGUIDAS POR P&T

Eu não sou um cara de superstições, acredito na ciência, na lógica e no fato de que, se um gato preto cruza meu caminho, a única coisa que pode dar azar é eu pisar no rabo dele, o que eu não faria, porque sou um verdadeiro amante dos bichanos. Não evito passar debaixo de escadas, não tenho problema com a sexta-feira treze e, honestamente, se sal grosso resolvesse problemas financeiros, o oceano Atlântico seria o nosso novo Ministério da Fazenda e, com certeza, mais competente. Mas ontem o universo decidiu testar os limites da minha paciência e resolveu me pregar uma peça, uma peça com atores de quinta: as letras P e T.

Tudo começou de forma sutil, quase poética. Acordei com o som insistente da torneira do banheiro: um “ploc-toc” persistente que parecia perfurar meu crânio. Fui para a cozinha, ainda cambaleando entre o mundo dos sonhos e o pesadelo dos boletos que precisa pagar. Peguei o pote de café que informava em letras garrafais: “PÓ TRADICIONAL”. Encarei as palavras por um instante. P e T. Peguei o pão de forma e coloquei na torradeira: Pão Tostado. Sentei à mesa a fim de saborear meu café esfumaçante e liguei a TV para o meu ritual diário do masoquismo jornalístico.

Na tela, uma tarja de notícias urgentes piscava em vermelho: “POLÍTICA TRIBUTÁRIA. PRESIDENTE TEM PLANO POLÊMICO PARA TRANSPORTE PÚBLICO”. Lá estavam os malditos Ps e Ts. Política. Tributária. Pauta. Presidente. Plano. Polêmico. Transporte. Público. Parecia um trava-língua para anunciar o apocalipse político. A apresentadora, com um sorriso visivelmente forçado, falava sobre um “PROJETO PILOTO”. Desliguei a TV, já bastava. Mal sabia eu que a perseguição estava apenas começando. Era um maldito padrão, um plano terrível do universo.

Entrei no carro e mergulhei no trânsito encaralhado de São Paulo. Por algum motivo, meu Spotify não estava funcionando e precisei ligar o rádio pra tentar me distrair. Péssima ideia. Um analista político, com a voz empostada, discorria sobre a “POLARIZAÇÃO TÓXICA” que tomou conta do país. Segundo ele, os “PARTIDOS” trocavam farpas, prometendo uma “PUNIÇÃO TOTAL” aos seus opositores, criando uma “TENSÃO PERMANENTE”. Desliguei o rádio com um tapa. Polarização Tóxica. Punição Total. Tensão Permanente. Parecia o slogan de um laxante, não uma análise política.

Olhei para a placa do carro da frente: PXT-2013. Meu cérebro, já contaminado, não leu “P-xis-T”. Aquele “xis” era claramente um intruso, um disfarce para a conspiração P-T. O carro ao lado, um SUV de proporções paquidérmicas, tinha um adesivo no vidro traseiro: “PROJETO TAMAR”.

Nesse instante, meu celular vibrou e o visor exibiu ma mensagem do meu chefe, Pedro Torres. As iniciais dele? P e T, claro.
“Reunião urgente. Apresentar o POWERPOINT do PROJETO TARTARUGA.”

Pedro Torres, o especialista em Projetos Tediosos. E o Projeto Tartaruga, que nome patético! Tartaruga lembra algum lento, pesado, teimoso, tal como aquele dia.

Na sala de reuniões, o ar-condicionado parecia conspirar para congelar minhas últimas partículas de sanidade. Pedro Torres, em pé, apontava para um gráfico de pizza projetado na parede.

“…portanto, o ponto principal, a premissa pétrea deste projeto, é a total transparência. Precisamos ter um protocolo padrão para testar todas as possibilidades.”

Ponto. Principal. Premissa. Pétrea. Protocolo. Padrão. Possibilidades. Pedro não falava, ele cuspia um dicionário de sinônimos da letra P. Eu só conseguia balançar a cabeça, petrificado. Meu cérebro estava em pane e a cada palavra com P ou T que ele pronunciava, eu sentia uma pequena pontada atrás do olho direito.

“Você parece distraído, algum problema?”, ele perguntou.

“Não”, neguei. “Tudo perfeito. Pensando nos próximos passos. Talvez um… plano tático?”, respondi, a voz saindo como um rangido. “Plano tático”, saiu sem querer, eu tinha sido infectado. O vírus P-T estava no meu sistema, se replicando a cada sinapse.

Na hora do almoço, fugi pro restaurante da esquina e pedi o prato do dia, na esperança de que fosse algo simples, como “frango com arroz”. O garçom chegou, solícito.

“Seu PEIXE na TELHA com PURÊ de TAIOBA e PIMENTA, patrão.”

Encarei o prato por um instante antes de agradecer. Até a minha comida, até o meu sustento estava mancomunado com o P e T. Peixe na Telha e Purê de Taioba. Eu comi com ódio, cada garfada era um ato de protesto, um protesto patético e silencioso contra a tirania das malditas letras. Na TV do restaurante, uma propaganda: “Cansado de pelos? Use a nova cera depilatória ‘Pele Total’! Praticidade e um toque aveludado!”. Pele Total. Toque. Praticidade. Chega! Chamei o garçom e paguei a porra da conta.

O fim da tarde trouxe a apoteose, o grand finale da minha tortura textual. Preso no trânsito outra vez, o sol poente tingia o céu de tons púrpuras, lindo, se não fosse trágico. O rádio, que eu liguei num momento de fraqueza, tocava um funk com uma letra cachorra, escrita por algum filho da puta e interpretado por algum cantor sem o mínimo de técnica vocal. “Meu pau tá duro esperando bucetinha”, repetia a música, mas meus ouvidos escutavam apenas o “pau tá”. Pau Tá. P e T…

Alguns minutos depois o trânsito para de vez. Pessoas com cartazes, protestando e atrapalhando o meu direito de ir e vir. Ajeitei os óculos na frente dos olhos e inclinei para ler os cartazes.

O primeiro dizia: “PELO TOMATE PERFEITO! CHEGA DE PRODUTO TRANSGÊNICO!”. O segundo: “TIREM OS PATINETES DA PAULISTA!”. E o terceiro: “QUEREMOS PONTUALIDADE NO TRANSPORTE PÚBLICO!”. Caralho! Três manifestações, por questões completamente aleatórias, resolveram se juntar só pra atrapalhar o meu retorno pra casa. Era o fim.

Pelo. Tomate. Perfeito. Produto. Patinetes. Pontualidade. Transporte. Público. Era isso, o colapso, o ponto de ruptura, a gota d’água num oceano de P’s e T’s. O motorista de trás, impaciente, buzinou e foi o estopim. Abaixei o vidro, coloquei a cabeça para fora e libertei a palavra que resumia toda a minha frustração. A palavra que, por uma terrível ironia do destino, era a síntese perfeita daquele dia.

“PUUUUTAAAAA QUE PARIUUUU!”

O grito ecoou entre os carros e alguns motoristas olharam assustados, outros, com uma cumplicidade silenciosa. Mas foi libertador, catártico. Eu tinha enfrentado o meu demônio alfabético.

Cheguei em casa exausto e me joguei no sofá. Eu só queria um pouco de paz, de tranquilidade. Após alguns minutos de olhos fechados, fui até minha estante a fim de encontrar algum livro que me permitisse espairecer e esquecer aquele dia. Então, vi um livro que um amigo me dera de presente e eu nunca havia aberto. Capa preta, simples, com o título “Paz no Tumulto” na lombada. Ao perceber o padrão P-T devolvi o livro à estante sem abri-lo. Nesse instante, o interfone tocou na cozinha, era meu amigo do andar de cima, Paulo de Tarso. Até nisso o maldito P e T estavam me perseguindo. Ele queria beber umas cervejas e jogar conversa fora, o que não seria uma má ideia, após um dia estressante.

Menos de cinco minutos depois, ele chegou com duas cervejas entre os dedos e uma caixa de piza toscana. Novamente, o maldito P e T.

O universo resolveu me sacanear, só podia ser. Depois que o Paulo foi embora, isso já quase meia-noite, abri meu notebook e comecei a digitar. Talvez toda aquela caralhada do P e do T rendesse pelo menos uma boa crônica.

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