Eu estava na esquina da Rebouças com a Faria Lima quando a primeira gota caiu na minha testa. Olhei pro céu com aquela cara de quem acabou de ser traído pela previsão do tempo que a Alexa me deu pela manhã, garantindo apenas 30% de chance de precipitação. Trinta por cento, eu pensei, é praticamente zero. É margem de erro.
Cinco minutos depois, eu era um pinto molhado (pinto de galinheiro, daquele que vive em quintal de roça, não me entenda mal) correndo feito desgraçado em direção ao metrô.
Tem uma coisa sobre as chuvas de São Paulo que ninguém te conta e, quem não vive por aqui, não imagina: elas têm senso de humor. E é um humor sádico, tipo aquele tio que te dá rasteira no churrasco de família. A chuva paulistana espera você sair de casa, espera você deixar o guarda-chuva em casa porque “ah, não vai chover”, espera você calçar o tênis branquinho recém-comprado em suaves parcelas. E aí, só aí, ela despenca com toda a fúria de uma cidade que acumulou raiva desde 1554.
Quando finalmente consegui me enfiar na estação, parei pra tirar a água dos sapatos. Foi quando vi a cena: um rio marrom e espumoso descendo pela Rebouças, carregando de tudo, garrafas pet, embalagens de isopor, sacolas plásticas, latinhas, um chinelo (sempre um chinelo solitário, nunca o par), e o que parecia ser um pedaço de cadeira.
O cara ao meu lado, tão encharcado quanto eu, balançou a cabeça: “A prefeitura não faz nada, mano. Olha isso.”
Eu ia concordar. Ia mesmo. Porque é fácil, né? Culpar a prefeitura é um esporte nacional, praticada com maestria por todos nós, cidadãos de bem. Mas aí eu lembrei de uma cena que presenciei na semana passada: um sujeito de terno, saindo de um Uber preto, jogando um copo de café vazio direto na sarjeta. Assim. Sem cerimônia. Como se a sarjeta fosse um lixo público… tecnicamente é, mas não nesse sentido.
E lembrei do vizinho do meu prédio, aquele que joga bituca de cigarro sacada abaixo. E da moça que vi na padaria despejando óleo de fritura no ralo da pia. E de mim mesmo, sim, euzinho aqui, que esses dias deixei cair o papel da bala no chão e pensei “ah, é pequenininho, não vai fazer diferença”.
A verdade inconveniente é que São Paulo é uma cidade gerida por pessoas nem sempre competentes que são eleitas por pessoas que jogam lixo na rua. É uma simbiose perfeita de mediocridade cívica. Somos a prefeitura que merecemos, e a prefeitura é o povo que merece. E não me refiro ao prefeito atual ou do partido político que ele representa. Aliás, de qual partido ele é mesmo? Sei lá, quase ninguém sabe.
O fato é que, quando chove, todo mundo vira especialista em drenagem urbana. “Tinha que limpar os bueiros!” “Cadê a manutenção das galerias?” “Precisava fazer piscinão!” E eu concordo. Concordo mesmo. A gestão pública é um desastre, as obras são superfaturadas, o planejamento urbano é uma piada que ninguém ri. Mas será que alguém vai falar sobre as toneladas de lixo que nós mesmos despejamos nas ruas todo santo dia?
Caralho! O córrego não entupiu sozinho. Ele não acordou uma manhã e pensou “hoje eu vou alagar a Marginal Pinheiros só de sacanagem”. Não! O córrego foi entupido por nós. Por mim, que joguei o papel da bala. Por você, que deixou a latinha de cerveja no parapeito do muro. Pelo entregador que largou a caixa de papelão em qualquer lugar. Pela loja que não amarra direito o saco de lixo. Pela construtora que deixa resto de obra escorrer pra rua.
E aí chove. E aí alaga. E aí a gente tira foto do carro boiando e posta nos stories com a legenda “São Paulo não está preparada para as chuvas”.
Enquanto eu filosofava ali, molhado e escorrendo água pelo nariz (porque eu não sou elegante nem nas minhas crônicas), uma senhora passou carregando cinco sacolas de supermercado e um guarda-chuva rosa pink. Ela pisou numa poça, se desequilibrou, mas não caiu. Tinha técnica. Era veterana. Provavelmente já tinha enfrentado a enchente de 2009, 2011, 2015, 2019, 2023, e todas as outras que a gente já nem lembra mais.
Ela me olhou com aquela cara de “primeira vez, filho?” e seguiu em frente, desviando de poças com a graciosidade de uma bailarina do Municipal.
Eu a invejei. Não pela técnica, mas pela resignação. Ela já tinha entendido: São Paulo é uma cidade de contrastes absurdos. Temos os melhores restaurantes e os piores buracos. Temos museus de primeira linha e esgotos a céu aberto. Temos prédios inteligentes e gestores burros. Temos cidadãos que reclamam da sujeira enquanto sujam.
Somos, todos nós, tragicamente cômicos. Ou comicamente trágicos. Não sei mais.
Quando a chuva deu uma trégua, saí do metrô e voltei pra casa. No caminho, catei três papéis de bala do chão, pequenos pecados alheios que contribuem pra grandes enchentes.
Guardei no bolso até encontrar uma lixeira. Foram 400 metros, quatro quarteirões. Uma caminhada curta que a maioria das pessoas acha longa demais.
E é por isso, São Paulo, que quando chover de novo (e vai chover de novo!) eu não vou ter cara de pau de reclamar. Vou apenas me molhar, feito o pinto idiota, que esquece o guarda-chuva, que joga papel no chão, que reclama da prefeitura enquanto contribui pro caos.