PROSEANDO

CONTOS, CRÔNICAS, ETC.

A PUTA DE JESUS

Nunca fui homem de andar sem rumo. Tenho metas, horários e compromissos, herança dos meus tempos de advogado, quando até o café tinha hora marcada no calendário. Mas naquele dia, não sei por quê, deixei o Waze no modo mudo e deixei o carro me levar. Era fim de tarde, chovia fino, e eu só queria um café. Nada mais, talvez.

Foi assim que acabei na Travessa Diana, e se você mora em Santo André, sabe bem de que tipo de rua estou falando. Não é rua de se errar inocentemente, é um daqueles lugares que parecem viver num fuso horário próprio, entre o pôr do sol e o pecado, entre o cheiro do churrasco grego e perfume barato de puta. Letreiros piscando, portas semiabertas, mulheres seminuas se apoiando nos batentes das portas como personagens de novela mexicana.

No início, só pensei: “Essas coitadas devem estar com frio.” Mas logo um ser interno (talvez o mesmo que me fez desligar o Waze) sussurrou: por que não parar um pouco e fazer algo pra aquecer? E foi o que fiz.

Parei em frente a um puteiro disfarçado de boteco que ostentava o nome de “Paraíso das Estrelas”, ironia das grandes, porque eu duvido que alguma estrela tenha entrado ali pra beber alguma coisa.. E foi bem na calçada que ela surgiu: cabelos vermelhos, sorriso de panfleto de dentista boqueta e um vestido de couro sintético mais justo do que Deus.

“Boa noite, gato. Procura companhia?”

Pensei por dois segundos. Um segundo de curiosidade e outro de vergonha, antes de responder:

“Na verdade, pensei em um café, mas a companhia pode ser uma boa pra aquecer.”

Ela riu, como quem já ouvira desculpas mais criativas.

“Café? Aqui café é caro, viu?”

“Não tem problema, eu pago”, respondi, tentando parecer descontraído.

Ela arqueou a sobrancelha, hesitante, e apontou com o queixo na direção da esquina. “Então vamos ali.”

Entramos numa padaria decadente, onde o pão francês parecia de ontem e o café, de anteontem. Me sentei, e ela se ajeitou na cadeira, cruzando as pernas com um ar profissional.

“Então”, ela começou, “vai querer o programa com ou sem café?”

Sorri. 

“Primeiro o café. Depois a gente vê se o ‘programa’ vale o investimento.”

Ela riu de novo, e por um instante, parecia apenas uma mulher normal tomando café com um estranho. Até que, entre um gole e outro, ela largou a bomba.

“Sabe, não sei se você acredita, mas Jesus te ama.”

Engasguei. O café foi parar no meu nariz. 

“O quê?”

“Disse que Jesus te ama. Ele tem um plano pra você.”

E eu, que achava já tivesse ouvido de tudo, fiquei ali tentando entender se era um truque de marketing novo da profissão ou algum código usado por elas.

“Desculpe”, falei, “mas não acredito em Jesus… Sou judeu.”

Ela deu um gole no café e sorriu com serenidade. “Melhor ainda. Jesus também era judeu.”

Tecnicamente ela tinha razão, mas não era o tipo de conversa que eu esperava ter numa padaria com uma prostituta.

“Escuta”, falei, tentando retomar o controle, “eu só queria um café e, talvez, uma foda…”

“Uma noite no motel?”, completou ela, com um olhar brincalhão. “Pois é, pode ser. Mas Jesus quer te oferecer algo melhor.”

“Melhor que uma trepada?”, perguntei, incrédulo. “Duvido.”

Ela gargalhou e colocou a mão sobre a minha. “Uma vida nova.”

E foi aí que percebi: eu estava sendo evangelizado por uma prostituta, na Travessa Diana, numa tarde de chuva.

Ela começou a contar sua história. Chamava-se Verônica e trabalhava ali há oito anos, mas ultimamente andava “em transição espiritual”, como ela mesma disse. Entre um cliente e outro, lia versículos no celular e assistia cultos no TikTok. Disse que já pensava em largar a vida noturna, que era “obra do Senhor” o fato de eu ter parado ali.

“Você acha mesmo que foi coincidência?”, perguntou ela, olhos brilhando. “Nada é acaso.”

Olhei pela janela. A chuva engrossava. “Sinceramente, quem me fez parar aqui foi o GPS, não Deus.” Respondi.

Ela riu, balançando a cabeça. “Ah, você não entende ainda. Quando Jesus quer falar com alguém, Ele dá um jeito.”

“Mesmo que esse jeito envolva uma esquina duvidosa e um pão amanhecido?”

“Especialmente nesses lugares.”

E não sei o que deu em mim, mas resolvi entrar no jogo. “Então quer dizer que você é uma espécie de missionária disfarçada?”

“Bem, não sei se posso me chamar assim… talvez seja.”

Ela pegou o celular e mostrou uma playlist chamada “As Melhores do Renascer Praise”. Eu engasguei com o café outra vez.

“E você toca isso enquanto trabalha?”

“Depende. Se o cliente for evangélico, eu pergunto. Uns aceitam, outros, não. Mas já atendi um padre que gostou de ouvir também… mas foi só uma vez, porque a maioria dos padres prefere sair com outros homens, sabe como é.” ela completou a frase rindo.

A partir daí, o papo virou um stand-up teológico. Ela falava da Bíblia, eu falava da Torá. Ela citava o Evangelho de João, eu citava o Bereshit. O carinha atrás do balcão olhava de rabo de olho, provavelmente porque já tinha visto a missionária da noite evangelizando outros clientes. Em certo momento, ela perguntou: 

“Mas você nunca pensou que talvez Jesus seja o Messias que vocês esperam?”

Sorri, paciente. “Eu não me importo com isso, prefiro deixar esse assunto pro rabino.”

“Pois eu acho que ele tá te perdendo pra concorrência, viu?”

E lá estávamos nós, às oito da noite, discutindo salvação enquanto o café esfriava, o pão ficava mais duro que pedra, e meu pau, mais mole que gelatina.

“Verônica”, falei, cansado, mas divertido, “você é a primeira prostituta evangélica que tenta me converter antes do programa.”

Ela deu de ombros. “Jesus disse pra pescar homens. Eu só ampliei o público-alvo.”

Fiquei uns segundos em silêncio, admirando a resposta. Depois disso, confesso que perdi completamente o propósito inicial da visita. Não fazia mais sentido pensar em motel. Mas eu estava curioso.

“Me diga uma coisa”, perguntei, “e se eu aceitasse ir pro motel assim mesmo, o que aconteceria?”

Ela pensou um pouco e respondeu, séria: “Eu oraria antes.”

“Oraria? Como assim?”

“Claro. Agradeceria pela oportunidade e pediria pra ele abençoar o encontro.”

A partir daí, o riso tomou conta. Eu comecei a gargalhar alto, e ela também. O rapaz atrás do balcão nos olhou com reprovação, mas ninguém se importou.

“Você é única, sabia disso?”, falei, enxugando as lágrimas de tanto rir.

“Todo mundo diz isso”, respondeu ela, vaidosa. “Mas normalmente é depois, não antes.”

A conversa seguiu, leve, quase afetuosa. Falamos da vida, dos erros, de absurdos e redentores improváveis. Ela disse que já tentara amar de verdade, mas sempre dava errado. Eu confessei que, no fundo, minha vida também precisava de conserto, só que em outra área. Ela falou que o perdão começa no espelho; eu, que o espelho costuma mentir. Rimos.

Quando a chuva parou, percebi que já era quase dez da noite. Ela me olhou e perguntou: “Vai querer o programa?”

Pensei bem. “Acho que já tive minha revelação por hoje.”

Ela concordou com a cabeça, sem se ofender. “Tudo bem… Tem um papel? Gostaria de deixar um versículo pra você refletir.”

O único papel que tinha era o meu cartão de visitas. Ela segurou o cartão, olhou os dois lados e depois anotou: “Lucas 5:31”.

Fiquei curioso depois. Chegando em casa, procurei o site da Bíblia online: “Os sãos não precisam de médico, mas sim os doentes.” Ri sozinho.

Mas o melhor, o mais inacreditável, aconteceu três dias depois. O telefone tocou, e era ela.

“Lembra de mim? A Verônica, da Travessa Diana.”

“Difícil esquecer, mas como encontrou meu número?”

“Tenho boa memória. Quando fui anotar o versículo, memorizei seu número. Mas relaxa que não liguei pra te perturbar”, disse ela, animada. “Você não vai acreditar, mas aceitaram meu pedido no seminário teológico, vou ser pastora um dia. E queria que você soubesse.”

“Mas por que eu?”, perguntei, meio tonto. “Que papel eu tive nisso?”

“Ué, você foi o único a não me chamar de crente puta, vagabunda ou qualquer coisa naquela rua. Se isso não for coisa de Deus, eu não sei o que é.”

Depois de mais algumas palavras, deliguei o telefone e fiquei olhando pro teto. Desde então, toda vez que passo pela Travessa Diana, olho na direção do puteiro e penso, talvez ela tivesse razão. Talvez o Deus fale mesmo nos lugares mais improváveis.

E se não foi Ele… bom, pelo menos tive uma das experiências mais inusitadas da minha vida.

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